Lei proíbe cerol em linha de pipa e impõe fim de tradição

Soltar pipa é uma prática que, tradicionalmente, mistura ludicidade com espírito competitivo. Normalmente, destaca-se aquele empinador que, além de elaborar a arraia mais estilosa, utiliza o cerol – material produzido à base de vidro ou mármore moído – para cortar a linha da pipa do oponente.

No entanto, os soteropolitanos amantes deste jogo terão de mudar a estratégia. Isso porque o prefeito ACM Neto sancionou, no início deste mês, o projeto de lei que proíbe o uso de quaisquer objetos cortantes na preparação das linhas de pipas, arraias e papagaios.

O texto, de autoria do vereador Tiago Correia (PSDB), visa, primeiramente, advertir o soltador irregular de papagaio. Em caso de reincidência, será aplicada uma multa de R$ 70. O montante arrecadado será destinado ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (FMDCA).

Sancionada pelo Executivo, a lei tem um prazo de 60 dias para regulamentação. Após isso, o município vai decidir qual órgão será responsável pela fiscalização.

Segundo Tiago Correia, a proibição do uso de materiais cortantes é necessária para evitar acidentes e mortes com motociclistas e ciclistas, além de coibir interrupções de energia elétrica, que são provocadas por arraias presas na rede.

Dados da Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba) registraram, até maio deste ano, 110 interrupções de energia em Salvador e na região metropolitana (RMS) acarretadas por linhas de pipa.

De acordo com a assessoria de comunicação da empresa, os bairros da Boca do Rio, Itapuã e Paripe estão na lista dos mais afetados.

Já a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), a Polícia Civil e a Superintendência de Trânsito de Salvador (Transalvador) não registram estatísticas de acidentes envolvendo cerol.

Porém o presidente do Sindicato dos Motociclistas, Motoboys e Mototaxistas (Sindmoto), Henrique Baltazar, reconhece o alto índice de pilotos feridos com linhas de arraia. Ele lembra que, há cinco anos, um motociclista morreu após ser atingido por linha na região da Boca do Rio.

Baltazar, que elogiou a lei, toma algumas medidas de segurança para evitar problemas com cerol. “Minha moto tem antena corta-pipa. Eu também reduzo a velocidade quando passo pela orla da Boca do Rio, onde sempre há um pessoal empinando arraia”, diz.

Divergência

Se a proibição das linhas de cerol agradou a quem trafega sob duas rodas, a medida não foi bem-vinda entre os amantes da prática que ocupam o espaço do antigo Aeroclube.

O autônomo Cláudio César, que empina arraia há 24 anos, explica a importância do cerol na linha para valer a competição. “Assim como todo esporte, na pipa existem vencedores e vencidos. Usar a linha cortante para derrubar a arraia do outro é uma forma de vencer a disputa”, defende.

Cláudio ainda criticou a falta de diálogo do poder público na aprovação da lei. “Os políticos nos enxergam como marginais, não como esportistas”, protesta.

Sobre a competição, o aposentado Antônio Mendes, que também é empinador, interpreta como algo cultural que, segundo ele, precisa ser respeitado.

“São gerações de famílias que soltam pipa na Boca do Rio. Nesse grupo, não há registro de assalto e tráfico de drogas, porque as pessoas se respeitam”, diz.

Para Antônio, o poder público deveria construir um local apropriado para soltar pipa (pipódromo). “Esses espaços já existem em outros países, como Chile, Índia e França”, diz.

Praticantes propõem criação de ‘pipódromo’

Em resposta à lei que proíbe o uso de cerol nas linhas de pipa, o comerciante Heraldo Carvalho solicitou uma audiência com a prefeitura e o Legislativo para discutir a construção de um pipódromo em Salvador.

“A intenção é fazer com que sejamos reconhecidos como esportistas. A prática da pipa não pode ser marginalizada”, explica Heraldo sobre as razões da reunião.

Ele, que também educa crianças sobre empinar arraia de forma segura, vem negociando com o vereador Tiago Correia a construção do espaço.

Diante desse debate, a Câmara Municipal já enviou ao prefeito ACM Neto um documento com a solicitação de estudo para construir o espaço exclusivo para empinar pipas.

Heraldo sugere o local do areal de Itapuã, próximo à Lagoa do Abaeté, como um dos lugares possíveis para implantar um pipódromo.

“Lá é longe da pista de carros e de postes de energia. Além disso, as pessoas estão acostumadas a empinar arraia nesse lugar”, explica.

Sobre o endereço do local destinado aos soltadores de pipa, o vereador Tiago Correia acatou a sugestão de Heraldo, mas pediu cautela.

“É preciso fazer estudos sobre os impactos ambientais da construção de um pipódromo. Além disso, é necessário estabelecer um local que não ofereça risco às pessoas. Por enquanto, ainda não há lugar decidido”, esclarece o legislador.

Associação

A falta de diálogo para aprovar a lei foi a principal crítica dos empinadores de pipa. Sobre esta questão, Tiago Correia explica que a falta de uma entidade que represente os praticantes do esporte dificulta as negociações com a categoria.

O empinador Heraldo Carvalho reconhece esse impasse, mas vem articulando lideranças do esporte para implantar a associação baiana de pipas.

“Além de servir para representar os empinadores diante do poder público, a entidade será responsável por organizar campeonatos na capital e no interior”, planeja o vendedor.

Heraldo acredita que a marginalização do esporte prejudica a formação de atletas promissores.

“Com a proibição do esporte, os garotos que, na maioria dos casos, são talentosos podem seguir o caminho das drogas e do crime”, apela.

*sob a orientação do editor-coordenador Luiz Lasserre