Sociedade de risco e moderno direito Penal: Tendências da política criminal no Brasil após a Constituição de 1988

foto_CarolCarolina Porto Nunes strong>Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
Mestranda em Direito Penal e Ciências Criminais pela Université Pierre Mendès-France

Demonstrada a relação entre Direito, Democracia e política criminal, analisa-se as tendências do Direito Penal Brasileiro após a Constituição de 1988 oscilantes entre o garantismo do regime democrático e o Direito Penal do Inimigo traduzido pelo endurecimento das penas, tipificação de condutas e interferência midiática neste processo, fenômenos influenciados pelo conceito moderno de sociedade do risco. Investiga-se estudos dogmáticos e não dogmáticos, comparando políticas criminais e comprovando a tendência de adotar-se, no Brasil, uma política não democrática, rígida e inconstitucional.
PALAVRAS-CHAVE: inconstitucionalidade; política criminal; cultura do medo; Direito Penal do Inimigo.
RÉSUMÉ: Après avoir démontré la relation entre droit, démocratie et politique sur la criminalité, on analyse les tendances du droit pénal brésilien après la Constitution Federél de 1988, celles-ci oscillant entre l’assurance du régime démocratique et le droit pénal de l’ennemi traduit par le durcissement des peines, la caractérisation des conduites criminalisées et l’interférence des médias dans ce processus, des phénomènes influencés par le concept moderne de société du risque. On examine des études dogmaqiques et non dogmatiques, en comparant des politiques sur la criminalité et en vérifiant la tendance à adopter, au Brésil, une politique non démocratique, rigide et inconstitutionnelle.
MOTS-CLÉS: inconstitutionnalité; politique sur la criminalité; culture de la peur; droit pénal de l’ennemi.
REFERÊNCIA PARA CITAÇÕES: PORTO NUNES, C. (2009) Sociedade do risco e moderno direito penal: Tendências da política criminal no Brasil após a Constituição de 1988. In: Caderno de Ciências Sociais Aplicadas (DCSA/UESB), Ano 4, n. 5/6, jan./dez. 2006: 213-235, 2009.
INTRODUÇÃO
O freqüente bombardeio da imprensa, em especial da mídia televisiva, acerca de acontecimentos delitivos cometidos por pessoas de baixa renda tem levantado questões importantes na sociedade brasileira. Como demonstram os fatos, sempre que crimes bárbaros são cometidos e amplamente noticiados, a população sente-se compelida a pressionar o Poder Legislativo para um tratamento mais rígido em relação ao criminoso (especialmente o rotulado/etiquetado), conduzindo a política criminal nacional para o Direito Penal do Inimigo. A título de ilustração, o amplamente noticiado crime contra a vida do impúbere João Hélio, no Rio de Janeiro (2007), cometido por quatro indiciados por homicídio doloso, dentre os quais um adolescente, fez com que a opinião pública se inclinasse a favor da redução da maioridade penal, hipótese que agride os direitos constitucionais do ser humano em desenvolvimento para quem as políticas penais não podem ser essencialmente punitivas, mas acima de tudo educacionais e ressocializantes.
Este fenômeno esconde a ideologia amparada no capitalismo cujo objetivo aplicado é ampliar na sociedade mundial a idéia de carência de segurança, a necessidade de rigidez estatal e a busca de segurança privada.
A condução das discussões e os rumos do Direito Penal têm alertado os estudiosos do Direito e das Ciências Sociais. A preocupação não é inédita, posto que vasta bibliografia acerca do tema já foi construída por pesquisadores brasileiros e outros estudiosos. Cláudio Alberto Gabriel Guimarães, no artigo “El caso Minas Gerais: de la atrofia del Estado Social a la maximización del Estado Penal”, demonstra como a cultura do medo é responsável diretamente pela capitalização do Direito Penal, criando uma verdadeira indústria do medo alimentada por uma mídia comprometida, pela privatização de serviços dentro dos presídios e pelo aumento de empresas de segurança particular. Marta Rodrigues de Assis Machado apresenta um estudo profundo sobre as origens da sociedade do risco e como este conceito tem conduzido legislações em diversos Estados a um processo denominado por Jakobis como a terceira velocidade do Direito Penal.
Entretanto, essas medidas são caracterizadas por uma política criminal equivocada e a construção da política criminal vigente fere de morte os princípios constitucionais, passando por cima de direitos fundamentais historicamente conquistados. O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), por exemplo, destoa das garantias constitucionais de que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante, de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão a direito (a decisão pela medida é administrativa), de que não haverá no sistema penas cruéis e de que ao preso será assegurada a integridade física, direitos estes insertos no texto constitucional, art. 5º. Em contrapartida, o ainda tímido movimento garantista, fortemente presente na douta jurisprudência do Rio Grande do Sul, procura opor-se ao sistema operante e apresentar uma alternativa verdadeiramente democrática, constitucional e efetiva.
Apontando-se as alterações na legislação penal após a instituição formal de uma república democrática, pretende-se demonstrar o retrocesso material a que se submete a Ciência Penal sempre que os riscos se tornam mais evidentes, enrijecendo um sistema que, constitucionalmente, deveria ser de prestação social. Para isso, buscar-se-á explicar o que é uma sociedade de risco e suas origens históricas, a forma como este fenômeno é explorado pela lógica capitalista e como os Três Poderes contribuem para a consolidação desta situação de extremo caos e agonia social. Alternativamente, demonstrar-se-á também como políticas públicas aliadas ao Direito Penal Garantista podem contribuir para a materialização do Estado de prestação social e da função ressocializante, retributiva e preventiva do Direito Penal, através de penas alternativas e da consolidação do Direito Penal Liberal ultima ratio.
DIREITO PENAL CLÁSSICO
O Direito Penal Liberal, de inspiração iluminista, adquiriu status de Ciência no Século das Luzes (XVIII) nas lições de Montesquieu e Beccaria, adotando-se uma tutela de direitos subjetivos contra arbitrariedades estatais, limitando e equilibrando o uso do jus puniendi. Desde então foi adotado um valor-princípio de suma significância, posto que dele emanam todos os demais direitos individuais: a dignidade da pessoa humana. Alicerçado neste princípio, este modelo de política criminal e seu sistema jurídico caracterizam-se pela (i) fragmentariedade, (ii) subsidiariedade e (iii) intervenção mínima. Significa dizer que o Direito Penal só tutela bens penalmente relevantes, i. e., apenas quando se configurar uma autêntica violação ao bem jurídico é que se recorrerá ao jus puniendi. Implica em que sejam, o Direito Penal e a privação da liberdade, a última alternativa para a tutela de bens e para o controle social. O bem jurídico penalmente protegido há que ter seus contornos bem definidos, sendo certo, escrito e estrito, funcionando como limite à ampla criminalização de condutas. Assim, penalmente relevante será a conduta que atente contra a ordem social e a moral pública. Neste sentido:
Unicamente a ofensa intolerável às liberdades asseguradas pelo contrato social é a que justifica a intervenção penal na liberdade humana (rectius: é a que pode ser considerada infração penal propriamente dita). Por outra parte, é absolutamente imprescindível que o poder estatal seja delimitado estritamente e que as múltiplas formas de sua ingerência na liberdade individual sejam delimitadas estritamente e claramente descritas na lei penal – lex certa ou princípio da taxatividade (GOMES, 2005 apud ROCHA, 2005, p. 2).
O Direito penal clássico é direito público, uma vez que é manifestação do monopólio estatal que visa à proteção dos direitos subjetivos dos indivíduos. Aparece de forma indissociável ao princípio da legalidade como principal garantia do cidadão contra possíveis arbitrariedades do Estado. Teoricamente, tem cunho preventivo geral negativo, inibindo coativamente comportamentos não desejados pelo direito. Aliado aos fins preventivos gerais, os indivíduos infratores teriam a resposta de acordo com sua conduta, recebendo a sanção na medida do descumprimento do pacto social. Finalmente, por tratar-se de uma democracia e de um Estado de Direito de prestação positiva, seu papel principal é ressocializar o infrator para que o pacto social seja restabelecido.
Cumpre mencionar, sem pretender esgotar tão vasto tema, os princípios constitucionais penais presentes no ordenamento que deveriam, dentro desta proposta, motivar a direção do sistema penal, mas que devido à falibilidade dos meios adotados e do fraco aparato governamental indiferente a políticas públicas de redução da criminalidade, são deixados de lado, abrindo lacunas para a adoção de um modelo inconstitucional e equivocado. São eles: liberdade, tolerância, taxatividade, secularização, retroatividade benéfica, proibição de excesso, necessidade, intervenção mínima, legalidade, adequação, ampla defesa, suficiência, responsabilidade subjetiva, limitação e pessoalidade da pena, subsidiariedade, fragmentariedade, fundamentação das decisões, irrelevância penal dos fatos, anterioridade, irretroatividade, proporcionalidade, humanidade, presunção de inocência, especialidade, contraditório, lesividade, razoabilidade, non bis in idem.
Este modelo amplamente garantista e social não consegue, entretanto, funcionar como proposto na atualidade. A sociedade se transformou, as culturas foram alteradas, avanços tecnológicos e novas formas de exclusão social ganharam lugar. A partir da II Guerra Mundial verificou-se a violação de toda essa principiologia, fazendo surgir teóricos defensores de profundas alterações no sistema penal vigente até então, aparecendo os Direitos penais de Primeira, Segunda e Terceira Velocidades. O primeiro é exatamente este direito liberal que trata crimes clássicos (furto, roubo, homicídio, fraude,…) assegurando no processo penal todas as garantias supramencionadas, mas admitindo conforme o caso a sanção mais gravosa que é a privação de liberdade. As demais velocidades relativizam direitos, como se explicará mais adiante.
INEFICÁCIA DO MODELO CLÁSSICO
Após a II Grande Guerra, o advento das transformações econômicas, políticas e sociais, aliadas à pós-industrialização e à era da informação, conduziu o Direito Penal Liberal nos seus moldes originais a uma desinteligência e ineficácia ante a manutenção da ordem pública e da paz social. Completou-se a migração do sertanejo e do miserável para as zonas urbanas, onde buscavam melhores condições de vida e sustento para si e sua família e não encontraram qualquer política pública que lhes desse perspectiva, sendo empurrados para as periferias, onde também encontraram outros excluídos: os negros libertos que anos atrás receberam o mesmo tratamento. A tecnologia e a pesquisa atribuíram um diferente valor ao trabalho humano, sendo imprescindível uma boa capacitação profissional para fazer parte do mercado de trabalho seletivo. A educação foi sucateada, a saúde privatizada e a casta menos (ou nada) beneficiada viu-se forçada a criar um código moral e uma regulamentação das relações humanas paralelos ao sistema convencional. Por outro lado, danos ambientais de grandes proporções, biotecnologia, crimes de internet, novos riscos e novas condutas ampliaram o rol de crimes e de criminosos, os de “colarinho branco”. Novas situações exigem nova regulamentação.
Ante esta situação, inevitável é a reformulação do sistema penal de forma a adequá-lo à realidade atual, sem, contudo, perder de vista os princípios constitucionais que o motivam. O que se tem notado na legislação penal brasileira após a edição da Constituição Cidadã é, em contrapartida, uma inovação que relativiza certas barreiras erigidas sob as exigências do Direito Penal clássico. Em outras palavras, os princípios de contenção da esfera penal têm sido tratados como barreiras impeditivas de um direito penal adequado às necessidades preventivas e de proteção da sociedade do risco. Figueiredo Dias ilustra a necessidade de flexibilização, como se pode conferir:
Não está o direito penal, por outra parte – argumenta-se –, preparado para a tutela dos grandes riscos se teimar em ancorar a sua legitimação substancial no modelo do “contrato social” rousseauniano, fundamento último de princípios político-criminais até agora tão essenciais como o da função exclusivamente protectora de bens jurídicos, o da secularização, o da intervenção mínima e de ultima ratio. Porque se quiser manter estes princípios, tal significará – assinalou-o Stratenwerth em duas conferências a vários notáveis – a confissão resignada de que ao direito penal não pertence nenhum papel na proteção das gerações futuras:
como entre outros e, principalmente, os temas dos atentados ao ambiente, da manipulação genética e da desregulação da atividade produtiva se vão encarregando já de mostrar ou prenunciar. Não uma função minimalista de tutela de bens jurídicos na acepção moderna, constituintes do padrão crítico de uma legitimação, mas a atribuição sem rebuços, ao direito penal, de uma função promocional e propulsora de valores orientadores da ação humana na vida comunitária – eis a única via que se revelaria adequada aos desafios da sociedade do risco.
É a partir deste raciocínio que novas teorias e movimentos como a Nova Direita Penal, a Tolerância Zero ou Direito Penal do Inimigo, o Movimento de Lei e Ordem, o Direito Penal de Dupla Velocidade e o Direito Penal de Três Velocidades apresentam inovações inconstitucionais amplamente divulgadas pela mídia como sendo a única alternativa para a reaquisição da segurança pública, tratando os novos riscos como matéria penal, quando são matérias política, étnica e social. Todas as correntes aqui mencionadas podem ser estudadas dentro de um fenômeno maior denominado Moderno Direito Penal, o qual se mostra retrógrado em relação aos princípios e direitos historicamente conquistados, amparado este fenômeno na idéia de sociedade mundial do risco, cuja análise está obrigatoriamente vinculada ao ideal capitalista de gerar riqueza e concentrá-la sempre nas mãos de poucos.
Transformação Social e (in) adequação do Modelo Liberal
Por certo período de tempo o modelo liberal foi útil ao controle social e à manutenção da ordem pública. Todavia, o surgimento de novos riscos e realidades passou a exigir uma postura estatal acerca de temas inéditos ou nunca antes alarmados. Nas décadas de sessenta e setenta um movimento de deslegitimação do direito penal e de crítica à resposta punitiva do Estado ganhou espaço. A realidade pós anos 80 (redemocratização) criou uma onda de expansão do Direito Penal, em virtude dos anseios da sociedade por mais segurança, sobretudo nos delitos de grande monta chamados de delito dos poderosos, tais como os econômicos, ambientais e políticos. Percebe-se a crise do direito penal, mas concomitantemente verifica-se a sua expansão como resposta jurídica a problemas sociais.
A população brasileira era predominantemente rural, os freios sociais funcionavam, a religiosidade do povo reprimia excessos e os coronéis conduziam os submissos. A violência do modelo não vinha à tona pela insipiência dos meios de comunicação. A incidência da criminalidade era baixa e dominada formal ou informalmente pela polícia. Foi neste contexto que veio a lume a legislação processual penal vigente até nossos dias. Vem daí também a estrutura básica da Justiça, do Ministério Público, do sistema prisional e da Polícia Judiciária, que se organizaram para atender ao modelo então proposto. Para a época, o comboio de segurança pública era satisfatório.
Vamos para a década de 50, quando a ousadia de JK despertou o gigante e as mudanças começaram a acontecer. A era do rádio chegou ao interior, as rodovias facilitaram o trânsito e a migração para as cidades teve início. Os freios sociais começaram a afrouxar e, com isso, a criminalidade passou a tomar nova feição e a exigir mais das instituições. O caso Aída Cury, retratado por David Nasser nas páginas d’O Cruzeiro, levantou o véu da droga e do crime na alta sociedade. Apesar desses fatos novos, a forma de atuação do aparato policial-judiciário-penal continuou a mesma.
Nas duas décadas seguintes as mudanças sociais aceleraram. No regime militar as comunicações se desenvolveram e a televisão implodiu as convenções que informavam a vida familiar e social. A “juventude transviada”, a liberação sexual e a descoberta de um novo mundo além do horizonte levaram ao aumento brutal de conflitos individuais e coletivos, gerando crimes cada vez mais complexos. Ainda assim, o modelo traçado para a segurança pública continuou intocado. Ou melhor, extinguiram o Juiz de Paz, que tinha um papel moderador importante e, em 1968, cometeram à Polícia Militar a exclusividade do policiamento ostensivo fardado. Apesar dessa nova atribuição, completamente diversa de sua missão original, a PM absurdamente manteve inalterado o modelo organizacional e, até hoje, arca(mos) com as conseqüências (SETTE CÂMARA, 2002, p. 15-16).
Não obstante a afirmação de doutrinadores no sentido de que o direito penal clássico permaneceu inalterado e inoperante frente às novas realidades, as questões cotidianamente criadas têm, em sua maioria, uma carência e uma preocupação muito mais política do que criminológica. A ausência de prestação social do Estado em todos os setores principais – educação, saúde, cultura e desporto, saneamento básico e segurança pública – contribui para o aumento dos índices de violência e criminalidade. Da mesma forma, o não enfrentamento sério dos conflitos étnicos e econômicos induz ao terrorismo, havendo já a hipótese de co-responsabilização do Estado pela não prestação positiva na prática de determinados delitos. A complacência e o envolvimento direto dos políticos e desembargadores com o crime organizado (como aponta a operação Têmis que autuou ministros do Superior Tribunal de Justiça e outros membros do Judiciário) demonstram que há interesses políticos e econômicos na permanência do crime organizado. As leis apresentadas para solucionar penalmente os delitos oferecem para o hipossuficiente marginalizado e sem oportunidades a privação da liberdade como forma de livrar a sociedade do problema, ao passo que para o hipersuficiente causador de danos ao meio ambiente ou aos cofres públicos se oferece uma série de privilégios como o mero pagamento ao Estado de multas e, às vezes, prisão domiciliar.
O modo como o Direito Penal foi compreendido no aspecto clássico (Iluminismo) não atende mais aos novos tempos dos fins do séc. XX e início do XXI. Tanto que hoje se fala em direito penal de duas e até de três velocidades, isto é, modos diferentes de justificar e aplicar o sistema penal a pessoas de classes diferentes, fenômeno estudado pela criminologia como a “teoria da rotulação ou etiquetagem” que seleciona o tipo de criminoso que se inserirá no sistema penitenciário e o que não fará parte disto.
Hassemer e Muñoz Conde (1995) identificam este fenômeno e arriscam uma idéia abolicionista para o Direito Penal se este permanecer nos moldes atuais:
Se o Direito penal é arbitrário, não castiga igualmente todas as infrações delitivas, independentemente do status de seus autores, e quase sempre recai sobre a parte mais débil e os extratos economicamente mais desfavorecidos, provavelmente o melhor que se pode fazer é acabar de vez por todas com este sistema de reação social frente à criminalidade, que tanto sofrimento acarreta sem produzir qualquer benefício.
Sociedade Mundial do Risco
A sociedade industrial construiu um arcabouço ideológico que legitimou a concretização do acúmulo de conhecimento e de tecnologias impactantes como meios para realizar um mundo mais igualitário. Esses meios, fundamentados na ciência e na tecnologia, seriam capazes de prover o mundo de abundância, diminuir e/ou controlar a escassez e a fome, as calamidades naturais, as pandemias, etc. Considerava-se que os problemas econômicos eram exclusivos das ciências econômicas, os problemas de saúde pública eram próprios das ciências da saúde, os problemas sociais eram específicos das ciências sociais e das iniciativas assistencialistas para consolidar a modernidade e administrar os riscos. O progresso se deu sem as precauções devidas e foi descoberto que o problema de uma área afetava diretamente outra; que a engenharia de alimentos afetava a produção em massa; que a produção industrial diminuía empregos; que a diminuição de empregos aumentava a criminalidade e afetava o meio ambiente; que as conseqüências do progresso desordenado e sem planejamento eram graves e a situação de risco que poderia ter sido evitada agora estava diante da sociedade nos extremos limites.
No sentido de uma teoria social e de um diagnóstico de cultura, o conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial (BECK, 1997 apud MACHADO, 2005). Ainda de acordo com Machado (2005):
Para Ulrich Beck, o processo de industrialização é indissociável do processo de produção de riscos, uma vez que uma das principais conseqüências do desenvolvimento científico industrial é a exposição dos indivíduos a riscos e a inúmeras modalidades de contaminação nunca observados anteriormente, constituindo-se em ameaças para as pessoas e para o meio ambiente. Portanto os riscos acompanham a distribuição dos bens, decorrentes da industrialização e do desenvolvimento de novas tecnologias. Estes riscos foram gerados sem que a produção de novos conhecimentos fosse capaz de trazer a certeza de que estes riscos diminuiriam ou seriam passíveis de controle e monitoramento eficazes. Esta certeza nos controles favorecidos pela ciência e pela tecnologia teve sua base na modernidade clássica onde os riscos eram compreendidos como fixos e restritos a determinados contextos localizados, e mesmo que atingissem à coletividade, estes seriam frutos do desenvolvimento de novas tecnologias. Já na sociedade de risco, os riscos ultrapassariam os limites temporal e territorial, e seriam produtos dos excessos da produção industrial (Castiel, 2001). O diferencial se refere ao papel da tecnologia na própria configuração do risco, deslocando o foco da ordem para a dúvida. São os avanços tecnológicos que, ao ampliarem o domínio do conhecimento e da visibilidade, ampliam igualmente o domínio da incerteza.
O estudo de Machado demonstra como o pensamento de Ulrich Beck enfatiza a produção social de riquezas/industrialismo como causa da produção social dos riscos e alerta que a ordem jurídica estabelecida
não mais garante paz e estabilidade, mas legitima as ameaças. Riscos modernos são encontrados nos campos da globalização da economia e da cultura, do meio ambiente, das drogas, do sistema monetário, das
migração e inter-migração, do processamento de dados, da violência juvenil. Na medida em que a sociedade do risco se consolida os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais escapam do controle dos mecanismos criados pelas instituições organizadas para manter a proteção da sociedade. Nesse contexto, a idéia de segurança torna-se o “contraconceito” do risco, introduzindo desafios para a efetividade dos mecanismos de controle social, dentre os quais se encontram o Direito Penal e as instituições governamentais – órgãos executivos e tribunais – encarregadas de aplicá-lo.
Uma sociedade amedrontada, acuada pela insegurança, pela criminalidade e pela violência urbana torna-se terreno fértil para o desenvolvimento de um direito penal de emergência, cuja justificação sociológica voltada para a prevenção facilmente encontra respaldo e legitimação. Todos se sentem vulneráveis, vítimas em potencial e a expectativa do perigo iminente faz com que as vítimas potenciais aceitem mais facilmente a sugestão ou a prática da punição ou do extermínio preventivo dos supostos agressores potenciais. Assim se configura a cultura do medo e o capitalismo busca, de algum modo, lucrar através de empresas de seguros de vida e seguro contra roubo, empresas de segurança residencial e terceirização do setor penitenciário, criando a indústria do medo.
Opinião Pública e a Mídia como Instrumento Ideológico Capitalista
A inserção da população nas discussões sobre segurança e políticas públicas é um importante passo para a consolidação de um sistema democrático. Isto porque democracia e pluralismo político não consistem exclusivamente na livre associação partidária e no direito de votar e ser votado. Mais que isso, implica em atuar politicamente desde o âmbito municipal ao federal, promover e participar de debates na comunidade, livre associar-se a idéias e ideais, formar opiniões, fiscalizar a atuação dos agentes políticos eleitos e aos quais o Poder (que emana do povo) foi delegado, fazer valer direitos, utilizar-se dos mecanismos constitucionais como o mandado de segurança e a ação popular, enfim, agir politicamente. É deste modo que o cidadão efetiva seu dever cívico e contribui na condução dos rumos políticos do país.
Entretanto, quando a pauta dos debates e ações é a segurança pública, esta não é compreendida pela população com a amplitude que lhe cabe, posto que o seu julgamento já está condicionado por certos fatores. Quando se associam violência, criminalidade e (in) segurança pública, a impunidade é o primeiro fator apontado como causa daqueles. É a partir deste raciocínio que se exige do Poder Público, especialmente do Poder Legislativo, um rigor maior para com o delinqüente, retomando idéias ultrapassadas, datadas do nascedouro da Criminologia, as quais se encontram superadas teoricamente. Isto porque a Criminologia moderna e todas as suas ramificações teóricas entendem que o fenômeno criminoso implica não apenas em se avaliar (culpar?) a pessoa do delinqüente, mas também a sociedade criminógena, elementos intrínsecos e extrínsecos ao crime, fatores ambientais e sociais, bem como a reação do Estado e o funcionamento de seu aparato (policial, judiciário e penitenciário) como co-responsável pela delinqüência.
Perceptível é a contribuição da mídia para a consolidação da cultura e da industrialização do medo. Basta sejam observadas as manchetes diárias e os apresentadores de telejornais induzindo o homem médio a temer mais e mais. O caso Daniela Perez fez com que a população pressionasse o Legislativo para o encrudecimento da lei de crimes hediondos; o caso João Hélio tenta forçar o Legislativo a inconstitucionalmente reduzir a maioridade penal. É de se notar que boa parte da expansão do Direito Penal é causada pelo emocionalismo excessivamente aumentado pelo sensacionalismo midiático e pela opção política equivocada em fundamentar o sistema penal em bases de tendências autoritárias, demagógicas e expansivas. Essa exacerbada intervenção penal é, entretanto, uma ilusão repressiva alimentada por essa mídia de massa que tenta colocar o sistema penal como instrumento para afrontar problemas sociais muito mais complexos e, diante de sua ineficácia para tal, induz a sociedade a alimentar uma indústria do medo
diretamente vinculada ao capital.
A indústria do controle do delito volta-se para a produção de seguros patrimoniais, para a seleção e o recrutamento de agentes de segurança privada, para a fabricação de armas e venda para civis (ante a ineficiência do Estado, o cidadão seria responsável pela própria proteção e de sua família), pelo lucro através da indústria do cárcere (saúde, educação, alimentação, trabalho dos presos). Toda uma política é desenvolvida em cima disso, principalmente pelo apoio da mídia.
Ante a histeria coletiva da delinquência crescente, se aceita a mercantilização das relações sociais pela lógica capitalista, bem como um Estado irresponsável que propicia uma abundância de leis penais casuísticas, motivadas pela opinião dos “penalistas de plantão do Jornal Nacional (Rede Globo)”, mas que não traz nenhum embasamento científico que comprove que um sistema penal mais rigoroso reduz a criminalidade ou a violência. O próprio sistema penal da forma como se aplica já é uma violência em si. Vera Andrade citada por Queiroz (apud PORTO, 2006, p. 67), na obra Funções do Direito Penal: Legitimação versus Deslegitimação do Sistema Penal menciona que:
Falar de direito penal é falar, inevitavelmente, de violência, mas não apenas da violência que é materializada pelos fatos considerados delituosos (homicídio, latrocínio, estupro), como também é falar da violência que é o próprio direito penal e seus modos de atuação, pois ele é em si mesmo violência seletiva, desigual, e de discutível utilidade, de sorte que tão grave e importante quanto o controle da violência é a violência do controle. A pena de morte, as penas privativas de liberdade, as prisões cautelares, por exemplo, distinguem-se do homicídio e do seqüestro pelo só fato de que aqueles constrangimentos estão autorizados pelo direito, enquanto estes últimos não, ou seja, a pena de morte e as medidas privativas da liberdade outra coisa não são senão autênticos homicídios e seqüestros levados a cabo pelo Estado legalmente.
O Direito Penal de Emergência ou pan-penalismo revela toda a incoerência e insensatez de um sistema jurídico-penal que se imagina racional e que acaba reduzindo-se a sua menor expressão, a punitivista, quando se sabe que a luta pela contenção da violência é sinônima da luta pela afirmação dos direitos humanos, pois a ordem pública não pode se confundir com comoção social. Ordem pública significa exatamente a preservação do Estado de Direito e o respeito às suas garantias.
MODERNO DIREITO PENAL
O Moderno Direito Penal aparece como uma crítica ao Direito Penal Clássico por este não possuir pressupostos de enfrentamento à criminalidade devido a uma supervalorização dos princípios que seriam óbices à nova eficácia do direito penal. A proposta se baseia, justamente, em um desvio dos conceitos originais e fundamentadores da intervenção punitiva, adotando conceitos inovadores, mas de constitucionalidade duvidosa, fragmentando e enfraquecendo a noção de Estado de Direito. Ao trazer uma política criminal de expansão do Direito Penal, as teorias uncionalistas adotadas principalmente por Jakobis (apud MACHADO, 2005, p. 135) se equivocam ao revelar como único bem jurídico penal a reafirmação da identidade normativa da sociedade e não os direitos individuais.
A teoria que se desenvolve a este respeito faz a separação entre dois sujeitos específicos: o cidadão (pessoa) e o inimigo (indivíduo). Cometendo um fato delitivo, o cidadão comete deslize reparável e não ameaça a comunidade ordenada, ao passo que o inimigo, este sim precisa ser destruído, posto que suas atitudes refletem um distanciamento duradouro do Direito. Nesses moldes, ao cidadão são devidas as garantias processuais penais, mas para o inimigo, já desvinculado do Direito e envolvido em atividades que revelam a negação dos princípios políticos ou socioeconômicos básicos, tais garantias não cabem, aplicando-lhes a coação como direito de guerra. Segundo Jakobis (2005, p. 30), “o Direito penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito Penal do Inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra”.
Estes “indivíduos”, por demonstrarem com suas condutas uma recusa veemente de participação no estado de cidadania, não podem usufruir dos seus benefícios. O Direito Penal do Inimigo nega-lhes, então, a condição de pessoas. A identificação deste grupo de “inimigos” se daria mediante a habitualidade, a reincidência, o profissionalismo delitivo e a integração em organizações delitivas estruturadas.
As atividades e a ocupação profissional de tais indivíduos não ocorrem no âmbito das relações sociais reconhecidas como legítimas, mas naquelas que são na verdade a expressão e o expoente da vinculação desses indivíduos a uma organização estruturada que opera à margem do Direito, e se dedica às atividades inequivocamente delituosas (GRACIA MARTÍN, 2007, p. 88).
O Direito Penal do Inimigo, inspirado no Movimento de Lei e Ordem e voltado para a prevenção, estende a proteção a bens jurídicos supra-individuais voltando-se para a prevenção geral mediante antecipação da tutela penal a esferas anteriores ao dano, flexibilização das regras de causalidade, normas penais em branco, delitos de perigo abstrato e tipos penais abertos (devido a uma ingerência penal nos campos da economia, do meio ambiente, da saúde pública, etc.), ampliação e desproporcionalidade das penas, constante tipificação de condutas irrelevantes penalmente em leis esparsas, responsabilização criminal das pessoas jurídicas, restrições processuais, instituição de um Regime Disciplinar Diferenciado e de meios coativos na fase instrutória do processo penal.
Estes são alguns dos aspectos observáveis no direito penal do risco chocando-se com princípios e regras clássicos, fragilizando o sistema de garantias. Referindo-se a tal fenômeno Silva Sánchez (1998, p. 66) avisa que o direito penal será um direito já crescentemente unificado, “pero también menos garantista, en el que se flexibilizarán las reglas de imputación y en el que se relativizarán las garantias politico-criminales, substantivas y procesales”. Se até a década de setenta buscava-se a tutela de bens jurídicos por intermédio de políticas públicas, agora se recorre ao Direito Penal para exercer a função de solucionar conflitos que, essencialmente, fogem à sua esfera (conflitos geopolíticos, étnicos, religiosos, administrativos). Apenas entre 1988 e 2004, setenta e cinco novas leis penais foram lançadas. Há uma crise da legalidade, observáveis, a título exemplificativo, as seguintes leis nacionais:
LEI 7960/89 (institui a modalidade da prisão temporária) – De forma gritante viola o princípio da não culpabilidade, além de ter resultado de medida provisória (meio inidôneo para criação de norma penal), padecendo de legalidade. A prisão temporária cabe quando: a) imprescindível para as investigações do inquérito policial, b) quando o indiciado não possuir residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade e c) quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na lei penal, que atestem a autoria ou participação do suspeito/indiciado nos crimes de latrocínio, estupro, tráfico, crimes contra o sistema financeiro e extorsão mediante sequestro.
LEI 8072/90 (crimes hediondos) – As ciências criminais não têm uma definição do que seja hediondez e isto viola o princípio da taxatividade. A equiparação entre todas as ações abrangidas no tipo penal “atentado
violento ao pudor” viola o principio da proporcionalidade (p. ex., beijo lascivo e forçar alguém a manter relação diversa da conjunção carnal).
LEI 8930/94 (homicídio qualificado e hediondez) – Esta lei equiparou todas as formas de homicídio qualificado ao crime hediondo. Também o fez com o homicídio simples executado em atividade de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente. Nos crimes hediondos a lei nega ao criminoso a anistia, a graça e a fiança. São as vedações expressas. Porém, para malefício do réu, na prática nega-se também a liberdade provisória e o indulto, violando o princípio da liberdade.
LEI 9034/95 (lei de combate ao crime organizado) – Proíbe a liberdade provisória e a apelação em liberdade, estipulando o regime inicial fechado. Permite o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais, convertendo-se a pessoa do juiz em investigador, envolvendo-se como parte e prejudicando a parcialidade do julgamento, segundo aqueles que são contra a construção formal desta lei.
LEI 9426/96 – Modificou o parágrafo 3º do art. 157 do Código Penal, aumentando para sete anos a pena mínima do roubo qualificado pela lesão corporal grave. A pena mínima para homicídio é de seis anos, carecendo de proporcionalidade a nova regra.
LEI 9605/96 (lei de crimes ambientais) – Por ter o texto bastante aberto com termos indefinidos cujo preenchimento cabe aos profissionais da área ambiental, os crimes ali descritos nessas condições violam a legalidade e a taxatividade. Ademais, questiona-se a necessidade da interferência penal em lesões ambientais (poderia recair nas esferas civil, tributária e administrativa) e a falta de proporcionalidade nas penas.
LEI 9613/98 (lavagem de dinheiro) – Ao instituir a delação premiada, incentiva a traição, o que é eticamente reprovável num Estado alicerçado na dignidade da pessoa humana.
MOVIMENTO GARANTISTA: DIREITO ALTERNATIVO
O Direito Alternativo é o gênero do qual o Direito Penal Garantista, defendido por Ferrajoli, é espécie. Apesar de tudo o que foi aqui apresentado e dos rumos complicados pelos quais se conduz o Direito Penal, é viável a manutenção de um Direito Penal mínimo, garantista e liberal, configurado em um modelo-limite ao exercício incontido do poder punitivo do Estado, pois seu amparo está na própria Carta Magna. Considerando que a intervenção jurídico-penal só se mostra útil e legítima ante a indisponibilidade de outros meios de controle social, só deveria intervir o Leviatã em casos de ataques violentos contra os bens de maior relevância.
A vanguarda sulista (em especial no Rio Grande do Sul, cujos magistrados possuem uma formação inspirada nas escolas garantistas da Espanha e da França) propõe a contenção do Direito Penal dentro de um núcleo rígido de garantias amparadas constitucionalmente, sem impedir o Estado de exercer seu controle sobre o intolerável, sem que com isso sejam questionadas sua autoridade e sua legitimidade. Entende, essa corrente doutrinária, que a necessidade política do direito penal se justifica como mecanismo de tutela dos direitos fundamentais, sendo estes os seus limites. Não se trata de benevolência com o crime, mas de saber contê-lo dentro dos limites socialmente toleráveis.
O Direito Penal de Intervenção, defendido por Hassemer, explica que delitos de pequeno potencial ofensivo devem ser tratados na esfera administrativa, os de médio potencial ofensivo remediados com penas alternativas e os de grave potencial ofensivo abordados com o direito penal clássico e suas garantias, mas podendo culminar na privação da liberdade.
Em suma, o Direito Alternativo pretende que o Direito Penal não se renda à prática de criação de leis oportunistas encomendadas por pesquisas de opinião pública numa Política Criminal comprometida com a satisfação imediata do anseio popular sem que se ataque as reais motivações do crime, as quais são, muitas vezes, a conjuntura social que merece uma reestruturação responsável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inegável é que o modelo penal e o processual penal apresentados ao longo desta discussão não se adéquam às necessidades emergentes de uma sociedade do risco em que novos perigos, novos fatos e circunstâncias se apresentam a cada dia. Um novo modelo precisa ser criado e posto em prática para acompanhar e controlar tantas inovações, mas o legislador só pode optar por um sistema penal em acordo com os princípios de uma república democrática de direito. Ante um Direito Penal antidemocrático que se oferece como única solução pra a questão da segurança, doutrinadores garantistas como Amilton Bueno de Carvalho (2007) apresentam um “direito alternativo” amparado pela constitucionalidade. O autor defende a submissão plena dos CódigosPenal e Processual Penal à interpretação principiológica constitucional, observando-se os fatos típicos de maneira empírica e não meramente finalista. A responsabilização de outras esferas jurídicas como a administrativa e a civil para o trato de delitos menores, reduzindo o problema da superlotação carcerária que, no fim das contas, não previne nem ressocializa é alternativa apresentável.
É indispensável o cuidado para que o Direito Penal não deixe a sua condição de garantidor da liberdade do homem, mas ações governamentais e institucionais urgem ante o fenômeno da globalização.
O que se pugna é pela cobrança efetiva e constante de políticas de reformas estruturais, tanto no plano social quanto no plano econômico, e a implementação de outros meios de controle social. Ao contestar com
repressão e castigo problemas cuja natureza é essencialmente social, ao não respeitar os direitos humanos básicos com o encarceramento em massa dos excluídos pelas próprias políticas públicas está configurada a transição do Estado social para o Estado penal.
O fulcro da questão está no modelo. A estrutura organizacional de uma instituição é concebida para realizar uma tarefa predeterminada. No caso policial-judiciário, a tarefa está rigidamente explicitada nos códigos processuais. A forma dos procedimentos, os passos a serem seguidos, enfim todo o modus operandi foi disciplinado em 1942 para um Brasil diferente do atual, quando o volume de trabalho permitia tantos preciosismos; quando o tipo de conflitos e a retaguarda existente davam vazão à demanda. Hoje o momento é outro. Ou atualizamos o modelo que aí está e, com ele, reestruturamos as instituições para seu novo papel, ou nos distanciaremos ainda mais da finalidade última do Estado (SETTE CÂMARA, 2002, p. 17).
Inconteste também é o aproveitamento pelo capitalismo de toda a situação de insegurança e medo causadas pela evolução moderna e alarmada pela mídia comprometida bem mais com os ideais de lucro que com o direito de informação de todo cidadão. Sobre isso, é preciso ter em mente que direitos fundamentais não são negociáveis ou alienáveis, ainda que indiretamente. Nesse sentido, Luis Gracia Martin (2007, p. 42) alerta que “não pode ser lícito nenhum ordenamento que estabeleça regras e procedimentos de negação objetiva da dignidade do ser humano, sob hipótese alguma”.
Aos estudiosos do Direito Penal e ao legislador penal cabe a difícil tarefa de adequar as políticas criminais à dogmática penal. É imprescindível que neste momento de crise, movimento natural para o nascimento de uma nova realidade, o legislador brasileiro defina os rumos do direito penal de acordo com a legalidade, isento de vícios e comprometido unicamente com a ordem social e o bem-estar do cidadão brasileiro. Para que tal objetivo se alcance, não se pode admitir como válida a inserção de regras incompatíveis com a dignidade do ser humano, princípio basilar e limitador do Direito Penal, sob pena de tornar-se o sistema injusto e desvinculado do Estado de Direito, já que a justiça é um valor superior do ordenamento jurídico no Estado de Direito.
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Fonte: www.blogdoanderson.com