Por que tem tanta farmácia na sua rua: setor esconde modelo de negócio que inclui venda de dados, fraudes e influência.
Uma farmácia em cada esquina
Um passeio pela movimentada Dom João VI, em Brotas, comprova essa expansão: são ao menos seis farmácias em um percurso de cerca de menos um quilômetro – algumas até da mesma rede. Fácil se questionar se uma não rouba a clientela da outra – mas os executivos das grandes redes batem o pé e defendem que poucos metros fazem a diferença para os clientes.
Se antes a capital baiana era conhecida como a cidade das igrejas (são 589), hoje já tem muito mais farmácias. São 966 drogarias em Salvador – quase dez vezes mais do que era registrado em 2010, segundo dados do Conselho Regional de Farmácia do Estado da Bahia (CRF-BA). Uma explosão que tem, por trás, não só o envelhecimento da população, a busca por melhor qualidade de vida e a febre da automedicação.
A situação é tão explicita que, em algumas cidades numa extensão de menos de 1 km, se ver 3, 4 farmácias – algumas até da mesma rede .
A mágica do CPF
Para começar a entender esse mistério, dê uma passada na farmácia mais próxima da sua casa — não precisa nem comprar nada, só observe. Ou faça melhor: relembre suas últimas idas. Em todas elas, você deve ter escutado “CPF na nota?”. Parece uma pergunta inofensiva, mas é o primeiro passo para abrir a porta do seu histórico pessoal a empresas privadas que coletam e vendem dados em um mercado milionário.
Redes como a RaiaDrogasil armazenam todas as compras feitas desde 2008: do antidepressivo ao cotonete. Esses dados formam um retrato completo da vida do cliente — doenças, frequência sexual, rotina de cuidados, idade dos filhos e até se ele precisa de fralda geriátrica ou planeja engravidar. O consumidor acha que está apenas garantindo um desconto; na prática, está fornecendo um mapa detalhado da própria intimidade.
Anúncios que valem mais que medicamentos
Essas informações sobre o consumo, o comportamento e a vida dos clientes viram moeda de ouro nas mãos de empresas de publicidade. A RaiaDrogasil, por exemplo, tem a RD Ads, um braço de marketing do grupo, que promete unir consumidores e anunciantes. Ela usa os dados de clientes para oferecer audiências a outras empresas e ganhar dinheiro com a privacidade alheia.
Empresas compram anúncios direcionados com base em filtros que vão de doenças crônicas a hábitos de consumo. Quer vender suplemento para um fisiculturista ou fralda para bebês de até dois anos? Basta cruzar dados coletados no balcão com o CPF informado no aplicativo. Tudo isso é feito com a aparência de legalidade e a conivência de milhões de clientes que entregam seus dados sem questionar e sem ter noção dos riscos. Nos Estados Unidos, pedir o equivalente ao CPF na farmácia poderia ser caso de polícia – o próprio CEO da RD Ads, Vitor Bertoncini, já reconheceu isso em entrevista; mas no Brasil, 97% das pessoas informam o documento sem hesitar.
Foto: Metropress
Truque do desconto
Por trás dessa coleta disfarçada de cortesia, está outro truque: o desconto que não é desconto. O cliente vê 70% de abatimento e comemora, mas o preço cheio exibido é inflado de propósito para tornar o benefício atraente. Segundo o Idec (Instituto de Defesa dos Consumidores), a diferença entre o valor final com “desconto” e o teto oficial de preços estabelecido pela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) pode chegar a quase oito vezes.
O problema começa na própria regulação. O Preço Máximo ao Consumidor (PMC), que deveria proteger o bolso do paciente, é artificialmente alto e desconectado da realidade. Um antibiótico como o Clavulin tem teto de R$ 422,86, mas era vendido por cerca de R\$ 166,81 antes do último reajuste. Como o aumento anual incide sobre o valor máximo, e não sobre o preço real praticado, as farmácias podem dobrar ou triplicar o valor de um dia para o outro sem infringir nenhuma regra.
O que dizem os órgãos:
Idec: “avalia que condicionar descontos à entrega de dados pessoais é uma prática abusiva e informa que o tema segue em investigação por diferentes autoridades”.
ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados): classifica os descontos como potencialmente fictícios
Procon Bahia: realizou uma operação motivada pelo aumento de denúncias sobre a exigência de CPF e está consolidando os dados da fiscalização. O órgão reforça que “nenhum consumidor é obrigado a fornecer seus dados pessoais como condição para acessar descontos ou promoções”
Vende-se remédio e doença
De volta à sua última ida à farmácia. Você provavelmente não percebeu, mas, por trás das prateleiras e dos descontos fantasiosos, há a venda de um estilo de vida que busca soluções em comprimidos. É a fabricação da doença para a venda do remédio.
Uma prática comum, porém pouco debatida, é a chamada “comissão por indicação”. Funcionários de farmácia recebem porcentagens por cada unidade vendida de medicamentos de determinados laboratórios. Ou seja: o balconista que recomenda um analgésico específico pode não estar interessado no bem-estar do cliente, mas no valor que aquela venda vai agregar ao seu salário. A indústria, por sua vez, abastece essas farmácias com material de marketing, brindes e até treinamentos – que mais se assemelham a cursos de vendas do que a orientações em saúde. Embora regulamentações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) limitem a propaganda de medicamentos, o controle sobre as práticas internas é frágil.
Foto: Agência Brasil/Elza Fiúza
Diagnóstico de faturamento
Essa lógica transforma a doença em oportunidade de lucro. Em vez de combater causas, o foco é manter o ciclo da prescrição e consumo e convertê-lo em faturamento. No ano passado, o grande varejo farmacêutico movimentou R$ 103,14 bilhões no Brasil. A rede RaiaDrogasil manteve a liderança pelo 14º ano consecutivo. Em seguida veio o Grupo DPSP (união da Drogaria São Paulo e Drogarias Pacheco) e as Farmácias Pague Menos. Quem paga esse preço é o consumidor, muitas vezes convencido de que precisa combater algo que sequer foi diagnosticado.
Lavagem de dinheiro
Provavelmente em um das suas últimas idas a uma farmácia você não deve ter pego filas, não deve ter esperado como é comum em negócios em alta. A drogaria deveria estar vazia, a não ser pelos poucos clientes e os muito funcionários. A pergunta que vem à cabeça aqui é: como elas se sustentam vazias e com muitos concorrentes?
E essa resposta passa, em alguns casos, por operações com propósitos bem mais obscuros. Investigações recentes da Polícia Civil da Bahia e da Polícia Federal revelam que esses empreendimentos podem ser usados, facilmente, como fachadas para a lavagem de dinheiro. Em 2023, uma investigação da Polícia Federal revelou que uma rede criminosa desviou quase R$ 40 milhões do programa Farmácia Popular por meio de drogarias de fachada, o dinheiro era movimentado com o uso de CNPJs de “laranjas” e CPFs de pessoas inocentes.
Modelo a se repetir
Em Salvador, a Operação Farmácia Legal, deflagrada em janeiro deste ano, apreendeu quase 1,5 mil unidades de medicamentos controlados que estavam sendo vendidos irregularmente em bairros como Cabula, Itapuã, Boca do Rio e Fazenda Coutos. A operação não apenas revelou a venda de remédios sem prescrição ou autorização da Anvisa, mas também expôs como esse ambiente pode ser favorável à prática de outros crimes financeiros.
Farmácias são atrativas para lavagem de dinheiro por operarem com alto volume de vendas diárias, aceitarem pagamentos em dinheiro e terem uma estrutura jurídica simples de constituição. Esses fatores facilitam a inserção de recursos ilícitos no fluxo financeiro como se fossem lucros legítimos. Ou seja: é um tipo de negócio com aparência de legalidade, mas mecanismos operacionais que dificultam a detecção de irregularidades.
Um xarope chamado lobby
Da sua ida à farmácia, um pulinho no Congresso Nacional. E da lavagem de dinheiro para p lobby. Com faturamentos na casa dos bilhões e um apetite insaciável por influência, as grandes empresas da área da saúde descobriram um caminho certeiro para emplacar suas prioridades: o investimento estratégico na Câmara e no Senado — ou melhor, em quem faz parte dele.
A conquista do espaço no Parlamento via contribuições milionárias já é de praxe na área da saúde. Nas eleições de 2022, por exemplo, Pedro de Godoy Bueno, presidente da Dasa (Diagnósticos da América S.A.) e herdeiro do grupo Amil (planos de saúde), doou R$ 2,95 milhões a mais de 50 candidatos de dez partidos.
Lucro sem fronteira
As empresas da saúde não se limitam a acompanhar de perto os debates legislativos no Congresso. Ela pauta, propõe, e, às vezes, até escreve os projetos. No Senado, há um projeto de lei, o PL 2.158/2023, que quer estabelecer que os medicamentos sem necessidade de prescrição médica podem ser vendidos fora das farmácias, como estabelecimentos de supermercados, por exemplo.
É uma tentativa de ampliar ainda mais as fronteiras desse ambiente, que, por trás de suas prateleiras, traz um negócio baseado na fabricação de doenças, a venda de dados, suspeitas de lavagem de dinheiro e um lobby poderoso que garante a proteção desse sistema. O resultado é perverso e quem paga a conta é o consumidor – mesmo saindo com um sorriso no rosto, acreditando no desconto via CPF.
Por: Ana Clara Ferraz, Daniela Gonzalez, Duda Matos, Ismael Encarnação e Luanda Costa Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole
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