Professora da UFBA, Malu Fontes repercuti em um artigo publicado no jornal A Tarde – domingo (14) O Drama da violência, nos lares brasileiros e principalmente na Bahia

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Em 2007, o Fantástico, o show da vida, como foi batizado ao nascer, contou uma história de sucesso dessas que emocionam o telespectador que se recusa a capitular diante das tragédias do mundo e sempre acredita que, sim, o mundo tem jeito, e que a vida sempre traz uma surpresa boa, mesmo que seja uma vez na vida e outra na morte ou que seja sob a forma de milagre. Através do programa, o Brasil ficou sabendo que Alcides do Nascimento Lins, pobre, negro, sem pai, filho de uma catadora de lixo da periferia de Recife, fora aprovado, em primeiro lugar entre os alunos egressos de escola pública, no vestibular de Biomedicina, na Universidade Federal de Pernambuco.

No último domingo, no mesmo Fantástico, o otimismo ou a esperança do mesmo telespectador que certamente ainda lembrava da felicidade gritada da mãe do estudante com o ingresso do filho em uma universidade conceituada, foram abatidos com a sentença apresenque tada à família do rapaz pela realidade brasileira, desta vez sob a forma de uma tragédia. Um dia antes, no sábado, Alcides, cuja formatura seria no final deste ano, fora assassinado por marginais na periferia de Recife, dentro de casa, com dois tiros, por não ter a informação sobre o paradeiro de dois vizinhos seus, os reais alvos da perseguição dos assassinos.

Pulo de gato A curta e a um só tempo bem-sucedida e trágica história de Alcides, contada e resumida para o país em duas cenas divididas por três anos pelas câmeras e microfones do Fantástico, no entanto, é apenas mais uma entre as tantas milhares de histórias com enredos semelhantes que se repetem todos os dias nas periferias e nos epicentros de violência brasileira. O que diferencia a história de Alcides da dos milhares de outros meninos pobres, muito jovens, quase sempre negros e assassinados entre a adolescência e a vida adulta é apenas a parte boa: por muito pouco, por um triz, Alcides quase conseguiu dar o pulo do gato que o catapultaria da vida de miséria, onde vigora uma sentença perene ameaçadora de morte precoce pela violência, para uma vida normal, na qual as pessoas fazem planos, têm oportunidades de realizar muitos deles e levam uma viga digna.

A morte de Alcides só tornouse notícia no Fantástico e tema deste texto porque ele, de certo modo, contrariou a lógica apresenque norteia a vida dos meninos iguais a ele e ingressou em uma universidade. Não fosse isso, seu nome sequer talvez merecesse referência específica na imprensa local de Recife.

Como ocorre com os crimes de exceção, ou seja, aqueles que vitimam os melhores nascidos, quando os meios de comunicação são os primeiros a chorá-los por aproximá-los de um “nós’” onde só cabe quem estudou, tem emprego, família e cruza conosco no cinema, na praia ou no shopping, a morte de Alcides tornou-se um fato chocante somente por um dia ele ter conseguido pular o primeiro muro, aquele que se para os miseráveis da universidade pública de qualidade.

Ele deixou de ser mais um menino pobre da periferia e se tornou um herói que driblou o destino previsível ao adquirir um passaporte para mudar de classe.

Não custa nada lembrar que isso só aconteceu por conta das políticas públicas de cotas que dão hoje aos mais pobres oportunidades de ingressar nas melhores universidades do país.

Também não custa nada lembrar que muitas das pessoas que se emocionam com a história de sucesso interrompida de Alcides dizem horrores das cotas e dos cotistas.

Dúzia de Alcides Muitos melhores nascidos ainda ingressam na justiça contra o sistema de cotas. Nesta semana, um grupo de estudantes que não conseguiu aprovação na Universidade Federal de Sergipe foi visto nos telejornais nacionais apresentado toda a sorte de recursos jurídicos do mundo porque não admitia que parte das vagas tenham ido para oriundos de escolas públicas.

Sem cotas, quantos alunos de escola pública hoje poriam o nome numa lista de aprovados no funil estreitíssimo das boas universidades? E a culpa não é dos estudantes, mas da (falta de) qualidade dessa instituição vagamente apontada como rede pública de ensino. Por que ninguém ingressa na Justiça contra os responsáveis pela tragédia nas escolas públicas? Na mesma noite em que o estudante de Biomedicina foi assassinado, quantos outros com idade e faixa de renda tiveram desfecho semelhante? Nem precisa sair da Bahia para colar sobre a história de Alcides mais de dez jovens mortos como bichos peçonhentos.

Em Vitória da Conquista, uma das cidades mais importantes do estado, a própria polícia adotou a modalidade esquadrão da morte e “produziu” em poucos dias dez cadáveres de jovens e varreu do mundo três outros que continuam desaparecidos, todos com menos de 18 anos, todos retirados de casa por homens encapuzados dispostos a revidar na linha “olho por olho” o assassinato de um policial militar.

A TV Bahia denunciou dia após dia a série de seqüestros, mortes e torturas e não se ouviu uma declaração minimamente satisfatória de qualquer autoridade sobre o fato de uma dúzia de Alcides ter sido varrida do mundo em uma semana apenas num bairro pobre do interior da Bahia. E agora é Carnaval.

Malu Fontes é Jornalista, doutora em comunicação e cultura e professora da Facom-Ufba