“Feliciano, você pecou gravemente, e tem desrespeitado à opinião e condições, alheias à sua verdade”

 

O Brasil assistiu, nas últimas semanas, a uma das mais extraordinárias manifestações de militância social e de engajamento político dos últimos anos, criando um movimento de repercussão nacional que eu vou denominar, por falta de melhor termo no momento, de Fora Feliciano. Confesso que o tema me chegou, como a tantas outras milhares de pessoas, por meio desse impecável instrumento de comunicação que é a Internet. Fiquei simplesmente impressionado com a gigantesca onda virtual que se formou após o deputado social liberal cometer o ridículo dos ridículos de pretender presidir a Comissão de Direitos Humanos, histórica pela defesa que faz de bandeiras às quais – parece até brincadeira – o deputado sempre manifestou posicionamento contrário, de sempre de forma verborrágica e desdenhosa.

O deputado Marco Feliciano assumir a Comissão de Direitos Humanos é equivalente ao Paulo Maluf assumir a presidência da Comissão de Orçamento ou um deputado federal declaradamente ateu como Jean Willys, presidir a Comissão de Assuntos Bíblicos – caso esta existisse: e confesso que, do jeito que as coisas vão, nem me admiraria se ela fosse realmente criada. Não dá. É incongruente. O mero fato de Feliciano ser deputado – argumento fajuto já largamente utilizado – não lhe dá o direito de pretender estar à frente de uma comissão que lida com questões históricas que migram do objetivo ao subjetivo num pulo, uma comissão que exige de todos os seus integrantes o mínimo de concepção filosófica de sociedade. E é esta concepção falta a Feliciano, cheio de amarras que é, como de resto falta a boa parte de nossos deputados federais. Mas uma coisa é não conhecer o assunto, outra – bem mais grave – é ser histórica e declaradamente contrário às bandeiras que deram margem à criação da Comissão de Direitos Humanos. Bandeiras que permitem, entre outras coisas, a liberdade de culto.

Sinceramente, não consigo entender com que carga de conhecimento o deputado-pastor Marco Feliciano conduziria os inevitáveis debates sobre mortos e desaparecidos políticos, sobre políticas públicas para negros e sobre os direitos sexuais. O deputado federal, um pastor influente e sabidamente limitado em sua compreensão de mundo, teceu comentários tão medievos acerca de alguns temas – como a ideia em tudo torpe segundo a qual os negros seriam uma raça amaldiçoada –, que fico a imaginar, não o que ele pensa, mas o que ele sente quando vêm à tona assuntos como cotas, pais-de-santos, terreiros e candomblé. E casamento gay, tema recorrente? Deixo claro que não é o fato de ser pastor evangélico que o desqualifica, talvez seja esta uma das suas poucas virtudes, mas é a carga de desrespeito à opinião e condição alhe ia, própria de quem interpreta as Escrituras no afã de atender suas satisfações terrenas, que o torna incompatível com a Comissão que hoje preside.

Mas, agora, sim, digo o que desejo: quero dar um forte abraço no deputado Feliciano. Evidente que de forma involuntária – e graças à falta de um chá de simancol –, ele foi o grande responsável por um bonito levante popular, que se desdobrou em passeatas, em manifestações em rede pela Internet, em áridas críticas do mundo intelectual e fez brotar pensamentos acerca da importância de determinados espaços institucionais, a exemplo da CDH, cuja existência tem um fim, tem objetivos, e não podem ser mero objetos de marketing parlamentar. Feliciano, você pecou gravemente, mas obrigado por devolver a tantos de nós a energia transformadora, às vezes tão bem escondida, mas que explode em manifestações de pensamento quando vemos que algum tipo de liberdade está sendo ameaçada.Elve Pontes