por Vinícius Assumpção
Sob o comando do Marechal Castelo Branco e a batuta do Ministro Juracy Magalhães, o Brasil promulgou a sua atual Lei de Abuso de Autoridade, a Lei nº 4.898 de 1965. Gestada em um contexto ditatorial, o diploma legislativo contém uma série de falhas, das quais se destacam a proteção insuficiente dos direitos do cidadão [1] vítima de abuso (a sanção penal mais grave é de 6 meses para a autoridade pública que comete a infração[2]) e a vagueza de diversos dos seus dispositivos penais, o que compromete diretamente o princípio da legalidade. Cinco décadas após e em momento de turbulência institucional e democrática, o país discute uma nova redação para responsabilizar as autoridades públicas que, no exercício do seu cargo ou função, violam direitos fundamentais do cidadão.
Uma nova redação para a Lei de Abuso de Autoridade foi aprovada no último dia 26 de abril de 2017 [3-4], após relatório do Senador Roberto Requião sobre os Projetos de Lei do Senado nº 280/2016 (do Sen. Renan Calheiros)[5] e nº 85/2017 (do Sen. Randolfe Rodrigues)[6]; o texto segue para a Câmara dos Deputados, onde passará por nova apreciação. Duras críticas têm sido feitas ao projeto, especialmente por sua suposta intenção de “calar de vez a força-tarefa da Lava Jato” para garantir a impunidade no país.
Os discursos não declarados de um processo legislativo são naturalmente nebulosos (por que uma nova lei somente agora?), mas não devem ser obstáculo ao enfrentamento de matérias que podem resultar positivas para o amadurecimento institucional. Deve-se reconhecer que o atual projeto encerra aspectos positivos e negativos, como de costume. Em primeiro lugar, representa, mais uma vez, a ampliação do conjunto de normas penais, em detrimento da adoção de um controle democrático das instituições que permita evitar os abusos praticados [7]. Caminha-se de acordo com o “fetichismo normativista” (Alberto Binder[8]), supondo-se que a lei penal será responsável pelas mudanças que a sociedade demanda. Superado esse ponto, não há dúvidas de que diversos dos crimes propostos protegem o investigado e as prerrogativas da defesa. É o caso da punição pela usual complacência com a exposição vexatória do preso à curiosidade pública [9] e sua fotografia para divulgação nos meios de comunicação [10], da antecipação de culpa do investigado nos meios de comunicação (recorde-se das inúmeras “coletivas de imprensa” que transbordam os limites do razoável)[11] e da custódia de pessoas de ambos os sexos no mesmo espaço[12-13].
Há também equívocos e eles são evidentes. Os dispositivos que responsabilizam a autoridade que dá início à persecução penal sem “justa causa fundamentada”[14] ou aquela que deixa de corrigir “erro relevante” que sabe existir em processo ou procedimento [15] ferem o princípio da legalidade [16] e dão margem a graves desvios de aplicação, exigindo detalhamento (qual o significado de “justa causa”?; o que é “erro relevante?”), reforma ou mesmo supressão. De todo modo, o debate sobre imprecisões terminológicas e vagueza de tipos penais precisa ser feito de maneira constante e consistente, não apenas quando se supõe que uma determinada operação pode ser prejudicada.
Não se pode esquecer que práticas como o desacato ainda são criminalizadas com pena de até 2 (dois) anos[17-18] e que uma série de crimes relegam ao investigado/acusado e à defesa criminal situação de notada insegurança jurídica. Recorde-se que a recente Lei de Organizações Criminosas atribui altíssima pena (3 a 8 anos) para aquele que “de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal”, sem que se defina exatamente o que seria a prática desse embaraço (seria a conversa entre corréus, como já se discutiu no caso Maluf, em São Paulo?[19]). Essas previsões legais também atentam contra princípios penais e, no entanto, carecem de maiores questionamentos por grande parte dos operadores do Direito. Cabe indagar: que abuso – e quando – nos convém?
Entre os argumentos de que a nova Lei de Abuso de Autoridade seria uma mera retaliação à Operação Lava-Jato – que teria como alvo mais de um terço do Senado – e a adoção de uma redação imprecisa, há reflexões importantes sobre quais comportamentos das autoridades públicas devem ser reprimidos num Estado Democrático de Direito. Enquanto esse debate se circunscrever ao asséptico cenário da capital federal, estaremos esquecendo que o sistema de justiça criminal tem como clientela diuturna preferencial negros[20] e negras[21], homens e mulheres [22] jovens[23] e pobres, cujos direitos são sequer conhecidos, quiçá respeitados. Essa é a realidade que precisamos enfrentar se buscamos um debate amadurecido e transformador.
Referências
[1] “Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), como também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote)” (STF, Segunda Turma, HC nº 104410/RS, relatoria do Min. Gilmar Mendes, julgado em 06/03/2012).
[2]) O Abuso de Autoridade implica sanções (art. 6º) administrativas (§1º), civis (§2º) e penais (§3º). A sanção penal será de multa, detenção de dez dias a seis meses e ou de perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de até três anos.
[4] O relatório e a redação aprovada estão disponíveis em: http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5245854&disposition=inline
[5] http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=2913735&disposition=inline
[6] http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5207832&disposition=inline
[7] Nesse sentido a advertência da professora Ana Elisa Bechara: “Revela-se, assim, necessária uma análise crítica do fenômeno de expansão do Direito Penal, partindo-se do resgate da importância dos direitos humanos ante os instrumentos de controle social formal exercido pelo Estado”. (BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Direitos humanos e Direito Penal: limites da intervenção penal racional no Estado Democrático de Direito, p. 155. In: Direito Penal Contemporâneo: questões controvertidas. MENDES, Gilmar Ferreira, BOTTINI, Pierpaolo Cruz; PACELLI, Eugênio (coord.) São Paulo: Saraiva, 2011).
[8] “Se deu o nome de ‘fetichismo normativista’ à prática segundo a qual as autoridades públicas sancionam leis, muitas vezes com propostas ambiciosas de mudança e, logo, se despreocupam com sua colocação em prática”. (BINDER, Alberto M. La Reforma de la Justicia Penal: entre el corto y el largo plazo. Trad. Livre. Disponível em http://w1.cejamericas.org/index.php/biblioteca/biblioteca-virtual/doc_view/593-la-reforma-de-la-justicia-penal-entre-el-corto-y-el-largo-plazo.html.
[9] “Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a: I – exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade; II – submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei; III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro. Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência”.
[10] “Art. 14. Fotografar ou filmar, permitir que fotografem ou filmem, divulgar ou publicar filme ou filmagem de preso, internado, investigado, indiciado ou vítima, sem seu consentimento ou com autorização obtida mediante constrangimento ilegal, com o intuito de expor a pessoa a vexame ou à execração pública. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.
[11] “Art. 38. Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.”
[12] “Art. 21. Manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.
[13] Que não esqueçamos da prisão, por 26 dias, de uma menor de 15 anos em uma cela com dezenas de homens na delegacia de Abaetetuba, no Pará: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83661-juiza-que-manteve-menina-em-cela-masculina-recebe-pena-de-disponibilidade
[14] “Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada ou contra quem o sabe inocente: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.
[15] “Art. 34. Deixar de corrigir, de ofício ou mediante provocação, tendo competência para fazê-lo, erro relevante que sabe existir em processo ou procedimento: Pena – detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, e multa”.
[16] O texto proposto viola especificamente a legalidade estrita ou taxatividade, que, segundo Luigi Ferrajoli, “prescreve, ademais, que tal conteúdo seja formado por pressupostos típicos dotados de significado unívoco e equívoco, pelo que será possível seu emprego como figuras ´de qualificação em proposições judiciais verdadeiras ou falsas. Disso resulta, assim, garantida a sujeição do juiz somente à lei” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3ª. Ed. São Paulo: RT, 2010, P. 93).
[17] Código Penal: “Art. 331. Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”.
[18] A norma, como se sabe, não resiste ao apurado controle de convencionalidade, como já decidiu o STJ (Quinta Turma, REsp 1640084, relatoria do Min. Ribeiro Dantas, julgado em 15/12/2016) e aponta o professor Alexandre Morais da Rosa (Disponível em: http://emporiododireito.com.br/desacato-nao-e-crime-diz-juiz-em-controle-de-convencionalidade/)
[19] O Supremo já apreciou a legalidade de decisão de prisão fundamentada na obstrução das investigações por conversa entre Flávio Maluf e Paulo Maluf, que estariam aliciando o corréu Vivaldo Alves. (STF, Tribunal Pleno, HC n º 86.864/SP, relatoria do Min. Carlos Velloso, julgado em 20/10/2005)
[20] “Proporção de pessoas negras presas segundo dados coletados: dois em cada três presos são negros. Ao passo que a porcentagem de pessoas negras no sistema prisional é de 67%, na população brasileira em geral, a proporção é significativamente menor (51%)” (Fonte: BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN – junho de 2014).
[21] “Em relação à raça, cor ou etnia, destaca-se a proporção de mulheres negras presas (67%) – duas em cada três presas são negras. Na população brasileira em geral a proporção de negros é de 51%, segundo dados do IBGE”. (Fonte: BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional – Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES. Junho de 2014).
[22] “Enquanto a taxa total de aprisionamento aumentou 119% entre 2000 e 2014, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou 460% no período, saltando de 6,5 mulheres presas para cada 100 mil mulheres em 2000 para 36,4 mulheres em 2014”. (Fonte: BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional – Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES. Junho de 2014).
[23] A partir dos dados foi possível aferir que, em todos os anos da série histórica de 2005 a 2012, a maioria da população prisional do país era composta por jovens entre 18 e 24 anos. Em 2005, dentre os presos para os quais havia essa informação disponível, 53.599 tinham entre 18 e 24 anos e 42.689, entre 25 e 29 anos. Já em 2012, 143.501 tinham de 18 a 24 anos e 266.356 destes tinham entre 25 e 29 anos. Olhando somente os dados de 2012 e considerando apenas a parcela para qual a informação sobre idade estava disponível, verificou-se que 54,8% da população encarcerada no Brasil era formada por jovens, segundo o Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852/2013), ou seja, tinha menos que 29 anos. (BRASIL. Secretaria-Geral da Presidência da República. Secretaria Nacional de Juventude. Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil)
* Vinícius Assumpção é Advogado criminalista. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Direito do Estado. Bacharel em Direito pela UFBA. Diretor do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2017-2018). Professor de Processo Penal da Pós Graduação da Escola de Magistrados da Bahia. Professor Convidado de Direito Penal da Pós-Graduação da Faculdade Baiana de Direito e da Escola Superior de Advocacia da Bahia. Professor de Processo Penal da Faculdade Ruy Barbosa/Devry
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