Por/André Ferraro.
Quando a já falecida Dona Marisa Letícia ousou plantar uma estrela nos jardins do Palácio do Alvorada em Brasília foi aquele bafafá. Uma enxurrada de críticas à então primeira dama que exigiam uma presidência sem partido, como hoje exigem uma escola sem partido, foram feitas de forma mais que virulenta. Na realidade o que aquele gesto representava de negativo não era a presença do partido nos jardins palacianos, afinal de contas ele estava legitimado na vitória eleitoral. O ruim era a confusão entre o público e o privado, o que era permitido decidir e o que não era. Velha doença da política nacional.
Esse é um fenômeno que atinge quase a totalidade dos governos e prefeituras Brasil afora. Os casos de nepotismo são apenas um exemplo da importância dos órgãos fiscalizadores nos limites impostos ao poder. E mesmo assim a cada dia surgem novos e novos casos. De troca de cargos com outros poderes, o nepotismo cruzado, à contratação direta de afilhados e filhos sem nenhum critério que não seja a tal confiança. E a doença segue se espalhando em várias instâncias, sambando na cara dos 15 milhões de desempregados do país.
A cultura política brasileira faz do poder uma ilimitada ação que mistura o público com o privado, pois ao agir apenas pelas suas próprias convicções, sem qualquer satisfação à sociedade, ou planejamento transparente do porque estão sendo gastos os recursos, os governantes desrespeitam princípios básicos do serviço público, como a impessoalidade.
Muitas das decisões em inúmeras prefeituras do Brasil, por exemplo, ainda são tomadas apenas pela vontade do prefeito, que admite, contrata, dispensa licitação, inventa inexigibilidade, celebra acordos empresariais, adia concorrências, ou seja, faz o que pode e o que não pode, faz o que quer e o que não quer com a coisa pública. Pra contentar o Rei e a realeza, tudo é permitido, sob as barbas da burocracia, que em alguns casos tenta estabelecer critérios, como bobos da corte, sem explicar as tais exceções absurdas e incoerentes.
Obviamente é o espelho de uma tradição medieval que nem os partidos de esquerda, dito progressistas, conseguiram resistir e reverter quando no poder, mesmo com iniciativas importantes como a criação dos conselhos e o orçamento participativo, que hoje servem mais para instrumentalizar a gestão, do que efetivamente estimular a participação e o diálogo social nas decisões, sejam elas administrativas ou orçamentárias.
No tempo em que discutimos uma reforma política no país não dá pra imaginar que esse tema não seja considerado: a pessoalidade. Como a política e a gestão pública são feitas de forma pessoal nessas bandas. E isso inclui desde os partidos e sua estrutura travada, com as famigeradas comissões provisórias, ao executivo, que trata a coisa pública como propriedade particular do mandatário.
Não conseguiremos resgatar a política, e reencanta-la, se não tivermos a coragem de colocar o dedo nas feridas do atraso, transformando a administração participativa e a consulta direta como obrigatórias. E hoje a tecnologia nos permite fazer isso de forma rápida e fácil.
Em Salvador, por exemplo, mesmo que embrionário, o programa Ouvindo Nosso Bairro, tenta inovar e mostra como é possível compartilhar algumas decisões. Um passo ainda tímido, mas importantíssimo como exemplo de boa pratica de governança e iniciativa.
Na outra ponta, da geração de empregos, oportunidades e espaços na máquina, o Governo do Estado ampliou o programa de contratação de estagiários, democratizando o primeiro emprego, inciativa fundamental para despersonalizar o acesso ao serviço público para milhares de jovens. Uma medida para se aplaudir de pé, pois quebra com práticas oligárquicas históricas, que usam a abusam do empreguismo como ferramenta pratica do seu fascismo.
Mas ao contrário desses exemplos, o que se vê como rotina em outros lugares da Bahia são decisões públicas sendo tomadas em âmbito e sob o interesse privado. Em alguns casos, mesmo que com boa intenção, se cria até uma estrutura paralela de comando à estrutura formal, muitas das quais reunidas nas cozinhas das casas dos mandatários, às vezes em hotéis ou em gabinetes de empreiteiras e grandes fornecedores, prestadores de serviço ou concessionários, com a finalidade de controlar e “mandar” na administração. Assim vão atropelando as competências e atribuições estabelecidas por Lei aos diversos membros da administração, que passam a ser meros executores de ordens e carimbadores de papéis.
Uma distorção vergonhosa. Um atraso absoluto. Afinal, deve-se respeitar os ritos, porque discussões de âmbito da administração pública devem ser tratadas no espaço destinado a elas, com respeito às autoridades estabelecidas, com transparência e agendas abertas à sociedade, que tem o direito de saber de tudo, absolutamente tudo. O que não pode é agente público e político receber empresários em reuniões secretas tarde da noite, vide a crise que Brasília experimenta.
O que mais assusta é que pouco, muito pouco, evoluiu, e apesar da atuação importante do Ministério Público, o que mudou foi apenas a forma, mas o conceito permaneceu o mesmo: ganhar a eleição dá ao governante carta branca para fazer o que quiser, ao seu bel prazer.
Creio que a democracia não pode mais tolerar isso, e a sociedade tem que ter mais instrumentos de fiscalização e controle independentes, pulverizados, fora do âmbito dos tribunais de contas e judiciário. Coisas fundamentais para que possamos criar mecanismos de participação que definam prioridades, consigam compartilhar decisões e assim previnam administrações desastrosas, ou apenas autoritárias, ou mais que isso, ajude-as a se tornar mais eficientes, a prestarem melhores serviços.
Precisamos colocar a participação popular e a democracia direta na pauta da reforma política com urgência. Observatórios sociais, imprensa investigativa, fóruns de discussão, coletivos culturais, associações de classe atuantes, espaços de atuação política fora da formalidade, são iniciativas que tendem a ganhar corpo, sugerindo, interferindo e dividindo responsabilidades.
Não cabe mais a uma sociedade achar que a política se encerra na eleição, a gente já sabe no que isso dá. Ficamos todos à mercê dos interesses diversos, menos o interesse público. Ao contrário, precisamos chamar o povo a assumir o controle, e mostrar que ali na eleição começa um espaço de atuação que deve ser disputado diariamente, fazendo valer a voz da sociedade sobre o poder, que por natureza se faz absoluto, impondo a ele correções e ajustes que garantam o avanço social, de todos e para todos.
Ainda resta uma esperança para a crise política que passamos, pois algo vai ter que mudar, porque do jeito que está não dá. Já deu.
André Maurício Rebouças Ferraro
- Administrador de Empresas e Publicitário, pós-graduado em Marketing Eleitoral e em Ciência Política, hoje é sócio da Crop Comunicação, empresa especializada em marketing digital e ações de inovação, tecnologia e participação social. Fonte B. do Anderson
Deixe seu comentário