Por/Afonso Silvestre
Muito cedo passei a entender o cinema como uma fonte para se compreender a história, a política, os costumes e conhecimentos dos povos, ou a Cultura, como se diz. Aqui entendendo Cultura como um conjunto de costumes e saberes consolidados, modos de fazer e compreender a vida ao redor, que se transmitem geração após geração. Ela tem a ver com o auto reconhecimento das pessoas, a sua identidade e o arcabouço de conteúdos inconscientes que moldam nosso comportamento, participam da formação do nosso caráter, ditam nossas respostas à sociedade. O seu desconhecimento significa fadar-se à submissão por mera incapacidade de se defender das agressões e imposições de costumes alheios.
Assim deve ser compreendida a Cultura ao se pensar em suas políticas, ou ações estruturantes e planos que envolvem diversas atividades ao longo de um tempo. Ao invés disso, o desconhecimento oficial deste conceito tem levado os municípios a entender cultura como um conjunto de eventos ou a promoção pontual de projetos individuais em forma de espetáculo, ajudas de custo pontuais, demandas espontâneas. O melhor antídoto contra essa deformação do entendimento é a prática da conversa, do diálogo, do debate, troca de ideias, compartilhamento de visões, a observação da realidade e a leitura do mundo a partir do que já foi pesquisado e consolidado pelas ciências sociais, pela linguística, pela psicologia, pela geografia, pela história, pela arte e outros saberes afins, juntamente com a sabedoria popular, que é a base da formação de toda cultura.
Por isso considero o cinema uma prática capaz de aglutinar pessoas em torno de si e debater essas questões a partir de provocações colocadas por filmes. Para isto servem os cineclubes. Não que sejam a única forma de difundir estes entendimentos, mas vejo na sua prática uma possibilidade enorme de se concatenar juízos e, através do debate, trazer insights e compreensões mais interessantes que possam nos mover de uma posição para outra melhor. A experiência com esta prática tem me proporcionado esta medida.
A prática dos cineclubes em Vitória da Conquista é um fenômeno eventual, registrado desde os anos 70 a partir de iniciativas individuais. Sempre houve incentivadores do exercício de se debater a vida a partir do mote de filmes de arte. O mais sólido, embora o que menos movimenta as pessoas, é o Janela Indiscreta, promovido pela UESB há mais de 20 anos, mas que se encerra dentro dos portões da universidade. Antes, promovia sessões itinerantes, atualmente, apenas exibe filmes numa sala especial, mas com pouca divulgação fora da instituição.
O poder público municipal realizou, na primeira década deste século, mais precisamente entre 2006 e 2010, o Cine Seis e Meia, no centro da cidade (teatro Carlos Jeovah). Porém, não encantou o público, que simplesmente não comparecia, ou quase não comparecia. Antes do Cine Seis e Meia, as secretarias municipais de Governo, de Educação e de Cultura promoveram o Cine Quilombola, com recursos do extinto Ministério da Cultura, um cinema itinerante nas localidades rurais para aquelas populações. Todos eles traziam um comentarista que provocava o público a debater a película exibida. Eu mesmo comentei diversos filmes de Mazzaropi para comunidades de agricultores familiares, falando para elas sobre identidade e autoestima.
Em 2018, a iniciativa do Cineclube J. Murilo trouxe novamente a prática para a cidade. Durante quatro meses foram exibidos 32 filmes, na mostra chamada “As realidades sócio políticas do século XX”. Com melhor estrutura e financiada pelo Governo do Estado da Bahia, a iniciativa teve recursos para remunerar comentaristas e promover discussões importantes acerca da conjuntura nacional e internacional naquele momento. Esta iniciativa foi, inclusive, premiada pelo Ministério da Cultura (hoje extinto) como uma das 10 melhores práticas realizadas em praças Céus no país. Mais de 400 pessoas participaram das projeções e dos debates.
Logo a seguir, começou a funcionar o Segundo o Cine, um cineclube mantido por crowdfunding com uma estrutura própria e a continuidade da prática de exibição de filmes de arte seguidos de comentário e debate com o público. Este cineclube já havia acontecido cerca de uma década antes, e retornou com melhor estrutura e ajuda coletiva. A iniciativa do Segundo o Cine trouxe novas possibilidades de financiamento para essas práticas, e mostra ser capaz de consolidar-se e replicar-se com o tempo, embora, de acordo com seus organizadores, ainda haja dificuldades para se arrecadar o recurso necessário através do financiamento coletivo.
Em maio de 2019, mais uma vez o Município passa a oferecer cineclube através do Cine Centro, desta vez com uma atenção e cuidado maior pelo poder público do que era dado ao Cine Seis e Meia. Com melhor estrutura física (embora ainda com problemas e deficiências na divulgação) e uma equipe definida para a manutenção, com curadoria, oferta de atividades paralelas e oficinas para o público, o Cine Centro funciona na Casa Memorial Regis Pacheco exibindo mostras temáticas.
Desperta curiosidade a prática da oferta de reflexão sobre cultura e questões sociais estar sendo conduzida pelo atual governo municipal, de recorte extremamente conservador em suas políticas. Nunca, nem mesmo num governo progressista que durou 20 anos, houve tanto apoio a ações estruturantes e atividades culturais realizadas dentro de um planejamento, principalmente nos últimos seis meses, quando a dança das cadeiras chegou à Secretaria de Cultura do Município e alguns gestores foram trocados.
Em março, um grande evento que durou todo o mês, foi realizado na Casa Régis Pacheco, em homenagem a Glauber Rocha. Cinema, música, teatro, artes plásticas, debates, passeios guiados em meio à memória do cineasta e uma ampla discussão sobre os rumos da cultura no município. Este evento, com a participação de 1.600 pessoas ao longo do mês, teve uma projeção importante, e foi um marco da “ocupação” do Memorial pelas práticas de desenvolvimento da arte e da cultura. Pela primeira vez, se não me engano, a Cultura local realizava um evento oficial, de peso e fora do circuito já comercial do Natal e São João.
Na Casa, foram realizadas as primeiras articulações para a reestruturação do Conselho Municipal de Cultura, foram concebidos os planos de ação para diversas atividades, como editais de premiação para obras de arte (começando pelo cinema), processo de levantamento do casario histórico restante para tombamento, entrevistas com celebridades e pessoas simples sobre a memória da cidade. Um esquema de guia de visitas foi criado, e o Memorial passou a oferecer este serviço aos visitantes. Ainda na casa, outras ações estão sendo desenvolvidas e trarão resultados nunca antes experimentados pela cidade, e só não aconteceram antes, infelizmente, pela clara falta de entendimento sobre essas questões.
Todos esses trabalhos visam à estruturação de um ambiente que permita políticas culturais sustentáveis, que perpassem a amplitude de um ou dois governos, ou seja, que se tornem políticas de princípio para o Município como um todo, e não apenas bandeiras pontuais, sem continuidade por sucessores. No caso do projeto desenvolvido atualmente, através de técnicos e gestores da Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer, trata-se de uma estrutura de ações que buscam o empoderamento da cidade em relação à sua memória e identidade. Assim, está sendo feito o levantamento de informações sobre o casario histórico restante, estudos sobre a diversidade de costumes nos territórios de identidade deste grande Município baiano, incluindo aqui as culturas e manifestações rurais, planejamentos para comemorações do centenário da vinda de Regis Pacheco a Conquista, disponibilidade de editais para premiar iniciativas de criatividade artística e cultural em todo o Município, com cotas específicas para comunidades tradicionais rurais. A possibilidade da utilização dos recursos do Fundo de Cultura está viabilizando todas essas, entre outras ações que vão valorizar e evidenciar os costumes, os lugares de memória, as manifestações individuais e coletivas, e, principalmente, permitir que as pessoas se reconheçam na memória da cidade.
A prática das conversas durante as sessões do Cine Centro está trazendo para a equipe de trabalho o subsídio necessário para se orientar nos caminhos de uma possível consolidação das Políticas de Cultura no Município. A abertura da Casa Regis Pacheco para visitações, rodas de conversa e outras atividades por iniciativa da população, classes artísticas e acadêmicas, também têm cumprido esta função de subsidiar, a partir da escuta das pessoas, as ações para o desenvolvimento da política cultural do Município. A partir do entendimento das próprias identidades, expresso pelos anseios dos que participam dos debates e se mostram em suas falas. Ou seja, no fim das contas, por mais que um Município ofereça condições para que se realizem esses trabalhos de planejamento, é ouvindo as pessoas que temos a verdadeira medida do que há para ser feito. E estamos fazendo.
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