O Juízo Final, D’Beato Fra Angelico
Por/ Gerivaldo Neiva *
Evitar o contato com o “mundo das drogas” está presente em discursos de quase todos os emissores quando o assunto é drogas. Assim discursam o padre e o pastor, muitos técnicos de programas de saúde e sociais, parlamentares de todos os níveis, secretários de segurança pública, governadores, prefeitos e presidentes, juízes, promotores, delegados, policiais, donas de casa e o cidadão “de bem”.
Neste discurso, a grande sacada e a salvação da “nossa” juventude é evitar que conheçam ou tenham contato com o tal “mundo das drogas”. Na verdade, é como se existissem dois mundos distintos: um mundo sem drogas e outro mundo com drogas! O primeiro, é o mundo da calmaria, da segurança, da honestidade, do respeito aos costumes, sem crime e sem pecado. É o mundo do bem e das pessoas de bem, de jovens obedientes, estudiosos e com um futuro brilhante. É também o mundo em que se pode usar, mesmo que abusivamente, álcool, tabaco, ansiolíticos, analgésicos e uma infinidade de outras substâncias, pois são consideradas como drogas legais e fazem parte da cultura do mundo sem drogas. O segundo mundo, o das drogas, é o mundo da perdição, do pecado, das orgias, do crime, da falta de segurança, da morte, do roubo de nossos patrimônios e a causa de todos os males que afligem a humanidade. É o mundo da maldade, de pessoas más e de jovens condenados ao desemprego, aos crimes e a morte prematura. A salvação, portanto, é evitar contato com este mundo de perdição…
Nesta falsa dualidade, Deus e todos os santos, sem dúvidas, habitariam o mundo sem drogas e, de outro lado, todos os demônios e seus diabos, também sem dúvida, habitariam o mundo das drogas. No primeiro, todos estariam salvos e, quando do juízo final, seriam os escolhidos para viveram a eternidade no céu ao lado de Deus, anjos e santos, passeando em lindas paisagens e ouvindo anjos tocando arpa sem parar. No segundo, estariam todos condenados ao fogo do inferno, aos espetos de satanás, ao sofrimento eterno. Neste dualismo hipócrita, o discurso moralista e preconceituoso prega que talvez ainda haja salvação para os que se arrependerem e se tornaram abstêmios, para os que resolverem optar pela cura do vício maldito, para os que abandonarem o mundo das drogas e passarem a habitar o mundo sem drogas. Nesta lógica, o mundo inteiro seria bem melhor, sem crimes e violência na mesma proporção em que as pessoas deixassem de usar drogas. Esta é mágica: sem drogas, não haveria crimes e violência.
Evidente que a realidade não é esta. Não existem dois mundos, não existe um mundo sem drogas e outro mundo com drogas. Na verdade, existe um mundo, uma realidade social repleta de tudo: tédio, estresse, depressão, dor, desespero, desigualdade, preconceito, miséria, pobreza, desemprego, desperdício, hipocrisia, virtudes, defeitos, vícios, pecados e, principalmente, drogas de vários tipos, muitas drogas. Sempre foi assim e assim sempre será. Em nenhum momento da história, a humanidade experimentou um mundo perfeito, de completa harmonia social, com pessoas absolutamente equilibradas, ou seja, o tal mundo sem drogas. Destilados, fermentados, tabaco, coca, ópio, cannabis, plantas as mais diversas, depois compostos químicos, no curso da história da humanidade, sempre tiveram um papel social, religioso, místico, cultural ou recreativo na vida das pessoas.
Da mesma forma, não se passa de um mundo para o outro, do mundo com drogas para o mundo sem drogas, como se fosse um passe de mágica, ou resultado de uma decisão pessoal e solitária ou pela cura, resultado de cultos e orações. No sentido contrário, também não se passa do mundo sem drogas para o mundo com drogas por tentação do diabo, por más companhias ou pelo simples desejo da perdição e do pecado. Na verdade, usuários e não-usuários, dependentes e não-dependentes habitam o mesmo mundo e, por isso mesmo, destinados ao mesmo final e não existe uma repartição sagrada, mantida por qualquer das religiões existentes no planeta, que vendam ingressos ou emitam passaporte para o céu, para a salvação.
Usar ou não usar drogas é um fenômeno complexo e não pode ser explicado de forma simplista. Da mesma forma, usar drogas lícitas ou ilícitas não implica menor ou maior perigo para o usuário a depender apenas da classificação em droga lícita ou ilícita. Tabaco e álcool, por exemplo, causam mais dependência e danos à saúde do usuário do que maconha. Nesta complexidade, alguns vão usar álcool moderadamente por longos anos e não causarão problemas a terceiros, além da própria saúde. Outros, por uma série de razões, vão se tornar dependentes do álcool e causarão sérios problemas à sua família, comunidade e saúde pública, resultando na morte em muitos casos. O mesmo se pode dizer com relação às chamadas drogas consideradas ilícitas: haverá usuários e dependentes, que podem ou não se tornar um problema para suas famílias e para a saúde pública. Enfim, compreender o fenômeno das drogas não é tarefa para um único ramo do conhecimento e não será a existência de leis mais ou menos severas que irá amenizar ou resolver os problemas causados pelo uso problemático de drogas.
Sendo assim, de nada adianta o Estado editar leis cada vez mais severas para punir traficantes se cada vez mais existem pessoas experimentando e usando drogas. Na verdade, não se usa drogas e não se deixa de usar drogas por que existe uma lei que pune traficantes com penas cada vez mais duras. Da mesma forma, não se começa a usar drogas e não se deixa de usar drogas por que existe uma lei tipificando este comportamento como crime, infração ou outro adjetivo que o considere anormal ou imoral. Logo, o caminho legislativo-repressor-punitivo jamais será a solução para a complexidade do fenômeno das drogas. Muito menos, a internação compulsória de dependentes ou o recolhimento em centros de recuperação que concentram suas ações exclusivamente em cultos e orações, como se o dependente químico pudesse ser purificado e resgatado de um ilusório “mundo das drogas” e entregue são e salvo ao “mundo sem drogas”. Na verdade, mesmo que se torne abstêmio por algum período, o dependente sempre retornará para o mundo em que sempre viveu e viverá. Seu mundo de tragédias pessoais, traumas, medos, inseguranças, fraquezas, estresse e depressão. Em resumo, o mundo real e nosso de todos os dias.
A “bondade dos bons”, dos que se acham perfeitos e puros, os santos, que se acham na obrigação de salvar as pobres almas que habitam o mundo das drogas, apesar das boas intenções de alguns, termina causando, algumas vezes, mais maldades do que bondades. O problema é que os “bons” se acham no direito de estabelecer os critérios para definir os “maus” e de lhes salvar das maldades. Para eles, os que se acham bons, os critérios e paradigmas da bondade são aqueles que sua cultura ou religião define como sendo universais. Assim, para um bom religioso, o seu conceito de boa ação e comportamento exemplar será também o exemplo a ser seguido e será também “bom” todo aquele que professar sua fé e obedecer seus sacramentos e dogmas.
Por fim, a política de “guerra às drogas” talvez tenha sido dos maiores equívocos e maldades cometidos pela humanidade. Em nome dessa guerra insana e ineficaz, mata-se, morre-se e são encarcerados centenas de milhares de pessoas em todo o mundo. Em algum tempo no futuro, a humanidade haverá de reconhecer a tamanha estupidez de seus atos com relação às pessoas que usam drogas que o próprio estado, obedecendo critérios econômicos e de geopolítica, classificou como ilícitas. Assim, como fez a igreja católica com relação à escravidão, a humanidade haverá de se quedar sensibilizada um dia e pedir perdão por tantas mortes e destruição causadas por sua estúpida política de “guerra as drogas”.
Para concluir, o complexo fenômeno das drogas não demanda uma solução, mas compreensão, tolerância e, sobretudo, um aprendizado de convivência e respeito com os usuários e dependentes, pois o preconceito, moralismos, intolerância, proibição e punição, ao longo da história, tem causado muito mais dores e mortes do que uma “solução” que jamais virá.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition – Leap Brasil (Agentes da Lei contra a Proibição).
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