Dói-me a vida…
por Elton Becker e suas memórias – Mafua de Malungos
“Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno”, este é um trecho de uma carta de Fernando Pessoa para Mário de Sá Carneiro, em 14 de março de 1915. Um excerto muito próprio aos meus dias, tempo de vacas magras, tais as adversidades. Curioso é que, no tempo de José do Egito, as vacas magras e feias comiam as vacas gordas e saudáveis. No meu, elas devoram tudo que encontram pela frente.
Famintas, comeram meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte. Devoraram tudo até roer. Por isto, ando (já faz uns tempos) pensando em Arthur Schopenhauer (1788-1860). Quando eu era jovem, o filósofo alemão era minha leitura de presunção, afinal Schopenhauer dava ares de gravidade ao menino esquivo, sempre nos cantos.
Não dava para fazer sucesso com as meninas, é evidente. Porém, alimentava intrigas intelectuais em mesa de bar. Mas, hoje, o filósofo é um incômodo. É quase um Gregor Samsa (personagem de Kafka, em “A Metamorfose”), imenso e grave, no meio da minha sala.
É que um dos conceitos-chave de Schopenhauer é o de vontade, do qual compreendo ser uma força, um impulso fundamental para a existência, i.e., um esforço incessante ou um impulso constante e implacável para ser e continuar. O que é, para mim, o grande problema, ou o processo — lembrando uma crônica de Clarice Lispector (1920-1977) —, pois, o que posso pensar da vida que não está aguentando viver? E não quer continuar, portanto?
Sim, a vida é tão curta, mas há gente que não aguenta viver e, ainda pensando Clarice, há coisas impensadas, há muitas coisas, coisas de que eu desesperava por não saber falar delas. Mas, sempre, sempre me doeu a vida que não quer viver. E hoje decidi falar.
Os meus dias “daqueles” são tal e qual “O Menino que Escrevia Versos” de Mia Couto. Donde se lê o seguinte diálogo: “Dói-te alguma coisa?”, pergunta o médico ao menino, que responde: “Dói-me a vida, doutor”. Hoje, a minha vida-doída se passa ao lado de dois velhos cansados, cheios e repletos de todos os cansaços, tantos quanto a velhice e a doença podem dar. E, meu Deus, como eles estão cansados. Estão exaustos, sobretudo, dela: a vida. Pode imaginar o quanto isso me dói? Não, não pode não.
Pois bem, atualmente, minha vida é compartilhada com duas pessoas idosas que carregam o peso da existência. Não se trata somente do cansaço físico, mas sim de uma exaustão profunda. Resultado de todas as provações e desilusões que a vida lhes impõe hoje e eles sabem que vai lhes impor amanhã, o que faz deles saturados da própria existência, da própria vontade de existir e não querer continuar, às vezes.
Em livro clássico, “Luto e Melancolia”, de 1917, Sigmund Freud (1856-1939) assevera que depois de algum tempo o luto será superado. O problema é: quando? Quando é/será “depois de algum tempo”? Amanhã? Não se sabe! Porque não existe tempo certo de luto. O tempo do luto é outro.
Por vezes, é inadmissível, é infinito, diria Christian Dunker. É uma travessia da gente enorme, como diria Riobaldo. E, adaptando Guimarães Rosa, o luto não está no início, nem no fim; ele se mostra pra gente é no meio da travessia — a toda travessia. É uma experiência que transcende a compreensão, é uma dor que nem Schopenhauer, nem filosofia nenhuma está dando conta.
Pelo menos há a literatura, a poesia.
Na sequência daquele diálogo entre menino e doutor, este último questiona o menino-poeta sobre o que ele faz nas horas em que lhe assaltam suas dores, ao que o garoto responde: “O que melhor sei fazer, excelência”. O doutor insiste em saber o que é e o menino arremata: “É sonhar”!
E, porque dói-me a vida que não quer viver, e, porque eu também estive de luto, eu ainda tento sonhar como Adélia Prado:
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.

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