Ministra do STJ e corregedora-geral do CNJ, Eliana Calmon espantou-se com a naturalidade com que os advogados dos réus do mensalão tentam converter a acusação de corrupção em caixa dois eleitoral. Falam de arcas clandestinas de campanha “como se fosse conduta corriqueira, socialmente consentida”.
A despeito de não desconhecer “as provas dos autos”, Eliana declara: “Para mim o mensalão soa como corrupção”, não como caixa dois. Na bica de deixar a corregedoria do CNJ, em setembro, a doutora falou aos repórteres Felipe Recondo e Fausto Macedo.
No curso da conversa, declarou-se “assustada” com tudo o que viu do privilegiado posto de observação no órgão responsável pela fiscalização do Judiciário –desmandos que vão da corrupção aos salários milionários. Contou que, depois de ter declarado que há “bandidos” escondidos atrás de togas, foi alvejada pela animosidade de Cezar Peluso, à época presidente do STF e do CNJ. “Ele tentou me inviabilizar”, disse. Disponível aqui, a entrevista vai reproduzida abaixo:
– Não é hora de o Supremo Tribunal Federal dar um basta na cultura do dinheiro sujo na política? E quem sabe o Supremo não vai dar? É uma grande oportunidade de estabelecermos alguns valores, um julgamento importantíssimo. Valores morais, valores éticos, políticos, não é? Valores de conduta de cidadania.
– A defesa dos réus do mensalão quer cravar que tudo não passou de caixa 2 de campanha eleitoral. A tese vai vingar? Como se fosse conduta corriqueira, socialmente consentida. Não conheço as provas dos autos, mas para mim o mensalão soa como corrupção. Eu me impressionei pelas imagens [a cena da entrega do dinheiro nos Correios], até hoje me choca. Não posso ignorar que este é um país de caixa 2. Isso é relativizado na hora que se vai examinar os fatos.
– O Conselho Nacional de Justiça puniu juízes que agiram parcialmente por causa de relações com as partes. No julgamento do mensalão discutiu-se sobre a suspeição do ministro Dias Toffoli. O exemplo não deve vir de cima? Isso está na pauta do dia. Não vou qualificar, por uma questão de hierarquia, questão disciplinar. Mas o assunto está na pauta do dia porque o povo anotou.
– O modelo de financiamento de campanha deve ser alterado? Ninguém ignora que nós precisamos fazer uma reforma política porque o financiamento de campanha neste país é uma vergonha. Nós, magistrados, ignoramos isso? Não. Se é um problema generalizado, é um problema que conta com a conivência de todos, de toda a Nação, tanto que até hoje não se tomou nenhuma providência.
– O STF vai ser julgado pela sociedade no julgamento do mensalão? O STF está com muito cuidado neste julgamento do mensalão porque a nação está olhando. Será um julgamento bastante técnico. Estamos no ápice da manifestação democrática do país. Alguns magistrados ainda não se aperceberam de que nós podemos ser julgados. É assim que acontece em qualquer democracia. A sociedade julga os serviços prestados por qualquer servidor público, e ministro é servidor público. Eu sou servidora pública. O STF está numa posição difícil, tem de prestar satisfação para os jurisdicionados. Ele tem um problema político por resolver, porque há realmente interesses políticos que estão em jogo. A nação toda está mobilizada, com os olhos voltados para o Supremo. E a saída do Supremo é julgar tecnicamente.
– Como foi a convivência com Peluso? Foi socialmente boa, só que ele é uma pessoa difícil. Eu insistia muito para ter um diálogo, mas sempre encontrei pouca receptividade. Despachávamos normalmente, uma vez por semana, mas de uma forma bastante seca, rápida. Essa convivência não me deixava à vontade, eu não me sentia fazendo parte de uma equipe. Comecei a sentir uma Corregedoria separada da gestão do CNJ e isso me incomodava bastante. Eu fui me encolhendo dentro desse universo CNJ para ser possível, então, fazer uma administração à margem. A Corregedoria era ignorada.
– Quando a senhora apontou “bandidos de toga” tentaram afastá-la? Naquele momento, meu entendimento foi de que o ministro Peluso quis publicizar uma insatisfação que já era dele. Se essa insatisfação fosse generalizada, naturalmente eu ficaria absolutamente impedida de continuar como corregedora. Ele pessoalmente ligou para os tribunais e pediu que tomassem a mesma medida. Ele queria que os tribunais se reunissem para examinar a nota de repúdio e divulgar. Eu sei disso porque no STJ, o presidente à época disse: ‘O ministro Peluso telefonou e pediu para eu reunir o plenário para aderir à nota de repúdio’. Isso também foi feito no Tribunal Superior do Trabalho, que emitiu nota assinada por todos os ministros, com exceção do ministro Ives Gandra.
– Qual era a intenção? Interromper a minha atividade. Se eu estou inviabilizada com a magistratura, eu não posso continuar corregedora, fico desmoralizada. A hora que eu chegar num tribunal eu estou inviabilizada, ninguém acredita numa pessoa que a magistratura repudiou, uma pessoa que quer o mal da magistratura. Essa foi a ideia. Superei porque tinha consciência de que não pertencia àquilo que diziam. O que estava na nota não era minha intenção, eu estava certa do que estava fazendo. Veio um apoio generalizado, como se a nota fosse um estopim. Recebi apoio até de ministros do STF, telefonemas, e-mails e este país explodiu de apoio. A mídia foi o grande veículo, o Estado fez editorais. Aí nós marchamos.
– Pensa em ingressar na política? Eu só sou magistrada, não tenho aptidão para a política. Sou uma pessoa que fala as coisas, não faço favores. Os meus amigos dizem ‘Eliana não faz favores, não é amiga dos amigos’. Eu sou amiga, mas dentro da minha atividade profissional eu não tenho amigo, não faço favor porque é uma questão de princípio. No dia em que fizer um favor, eu faço dez.
– Em muitos Estados é baixo o índice de condenações por improbidade e os salários dos magistrados são altos. Faz alguma relação entre essas duas situações? Faço. Este é um país preconceituoso, dominado por elites econômicas e políticas que ainda têm peso grande nos tribunais. E é dentro desse espírito elitista, patrimonialista, que nós temos dificuldades de mudança de cultura. Ainda há magistrados que têm a concepção de que isso é normal, para as elites tudo é permitido e relativizam os atos de improbidade. É uma prática em alguns Estados. Estabelecer salários altos para, dessa forma, ter a conivência da magistratura. Temos de acabar com esse compadrio de tribunais com governadores. Chefes do Executivo, às vezes, repassam verbas para altos salários para terem o quê? A compreensão do Judiciário, a conivência.
– No Tribunal de Justiça do Rio, onde as condenações por improbidade não superam dez casos, salários oscilam entre R$ 100 mil e R$ 150 mil. No Rio houve um complô de tal forma que hoje nós temos TJ, Poder Legislativo e o Executivo todos coniventes com aqueles salários altíssimos pagos aos desembargadores. Isso não pode ser a troco de nada, porque o Rio padece de uma série de deficiências. E nós vamos encontrar o quê? Uma absoluta inação do Poder Judiciário para com alguns segmentos, algumas demandas. Querem ver o problema? Os grupos de extermínio. Nós encontramos grupos de extermínio em processos no Ceará, na Bahia, em Alagoas, esses Estados mostram que pelo menos são abertos os processos. No Rio, não.
– A Corregedoria investiga a evolução patrimonial de magistrados e a discrepância com salários? Os processos estão para ser abertos. Eu ainda não sei como foi que chegou esse dinheiro, se foi por venda de sentença. Os juízes vão ter de explicar. Na sindicância alertamos [o magistrado]: ‘Seu patrimônio está a descoberto, venha explicar o motivo de seu patrimônio crescer se seus ganhos são insuficientes’. Eles não conseguiram explicar. Vamos propor processos disciplinares. São de 7 a 10 magistrados. A concentração maior está em Mato Grosso do Sul. O CNJ tem amedrontado um pouco, estabeleceu um freio. Mas não é suficiente. Precisamos da atuação das Corregedorias locais. Eu estou assustada. Vejo muita melhora, mas nós precisávamos ter muito mais energia para vencer. A magistratura de primeiro grau é a mais saudável, mais idealista, tem menos convivência com as elites, não se mistura. Os juízes do primeiro grau precisam tomar as rédeas do Judiciário. Eu defendo eleição direta na escolha [da cúpula dos tribunais], participação da primeira instância.
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