Heroi da Baía dos Porcos vive como mendigo nas ruas de Havana
Ricardo Galhardo, enviado a Havana, Cuba | 17/04/2011 07:27
Hoje a única batalha à qual Carlos, 72 anos, se dedica é a de convencer os turistas que passeiam pelo bairro de Havana Velha a lhe pagarem uma bebida. “Meu dinheiro só dá para a comida e sempre tive um lema. Primeiro a comida, depois a bebida”, diz ele estendendo a mão com três níqueis de 10 centavos de CUC, a moeda dos cubanos.
Quem passa por ele não imagina que aquele velho com roupas esgarçadas, hálito de rum barato e aparência de mendigo é um dos heróis da maior conquista militar de Cuba, a batalha da Baía dos Porcos, que hoje completa 50 anos.
Visivelmente embriagado às 15 horas, quando foi localizado pela reportagem do iG, Carlos não conteve as lágrimas ao lembrar dos três dias de luta que resultaram na expulsão de um batalhão de 1.297 exilados cubanos treinados e armados pelo governo dos Estados Unidos com a missão de derrubar o governo revolucionário e matar Fidel Castro. “Lutávamos por amor a Cuba e à revolução. Naqueles dias não me preocupava em morrer em combate. Talvez tivesse sido melhor. Hoje seria um mártir em vez de mendigo”, disse Carlos.
Carlos vive nas ruas de Havana, mas não contém as lágrimas ao lembrar da batalha que marcou a maior conquista militar da história de Cuba
No dia 17 de abril de 1961, quando começou a invasão, o então primeiro-tenente do Exército Revolucionário estava aquartelado em Havana quando soou o alarme, por volta das 3 horas. “Houve uma excitação muito grande. Não sabíamos o que estava acontecendo. Só tivemos clareza da situação quando já estávamos nos caminhões rumo à Baía dos Porcos”, recorda.
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“No primeiro momento pensei: estamos mortos. Não temos a menor chance contra o exército mais bem armado do mundo. Então Fidel chegou à frente de batalha e sua presença nos deu confiança. No segundo dia, já sabíamos com certeza que ganharíamos a batalha.”
Depois disso ele ainda combateu em Angola e passou mais 10 anos nas Forças Armadas, até ser dispensado por invalidez devido a um acidente de carro. Hoje vive como aposentado e recebe um salário de US$ 15. Perguntado se participaria do desfile militar em comemoração aos 50 anos da batalha, Carlos disse que não. “A festa é para o governo, não é para as pessoas que arriscaram a vida”. E mudou de assunto.
Comemoração
A efeméride foi comemorada na manhã deste sábado com um grandioso desfile militar e popular, do qual participaram o presidente Raúl Castro, convidados, e milhares de pessoas que tomaram a avenida em frente à Praça da Revolução aos gritos de “viva Fidel”. As comemorações ocorrem paralelamente ao 6º Congresso do Partido Comunista de Cuba, no qual serão debatidas reformas sem precedentes na economia da ilha.
O desfile contou com a narração ao vivo de um casal de apresentadores que lembrava as transmissões dos desfiles de Carnaval. Nem todos os participantes estavam lá por vontade própria. É o caso de Madalena, garçonete em um restaurante sofisticado em Havana Velha. “Somos obrigados a participar para não perdermos o emprego”, disse.
O desfile foi transmitido pela TV estatal com direito a reprise na manhã de domingo. A única forma de ver o desfile ao vivo era participando da caminhada. Os poucos lugares na plateia foram reservados para as autoridades e convidados do governo.
Menino carrega cartaz durante as comemorações dos 50 anos da vitória cubana na tentativa de invasão da Baía dos Porcos
Na verdade, a ênfase maior da festa foi no aniversário de 50 anos da proclamação do caráter socialista de Cuba feita no dia 16 de abril de 1961, véspera do ataque.
Na edição de sexta-feira o jornal Juventude Rebelde publicou um encarte especial de 16 páginas com a primeira parte das “reflexões de Fidel Castro” sobre o episódio. O texto foi lido em um programa de debates da TV estatal
A invasão
No dia 17 de abril de 1961, 1.297 cubanos exilados nos Estados Unidos armados e treinados desembarcaram na praia Girón, localizada na Baía dos Porcos, ao norte de Havana. O desembarque foi precedido de um bombardeio ao aeroporto civil do local. Três dias depois, os invasores foram derrotados. O saldo, segundo o governo cubano, foi de 176 mortes.
À primeira vista o episódio parece irrelevante, mas suas consequências foram nefastas, levando no ano seguinte as duas superpotências da época, EUA e União Soviética, ao ponto mais próximo de uma guerra nuclear.
No dia 18 de abril, o presidente União Soviética, Nikita Kruschev, enviou uma carta ao norte-americano John Kennedy nos seguintes termos: “Senhor presidente, dirijo a vossa excelência um urgente apelo para que ponha fim à agressão contra a Cuba. Os armamentos militares e a situação política mundial hoje em dia é tal que qualquer uma das assim chamadas ‘pequenas guerras’ pode deflagrar uma reação em cadeia em todas partes do mundo (…) No que concerne à União Soviética não deve haver engano sobre nossa posição: forneceremos ao povo cubano e a seu governo todo apoio necessário para repelir o ataque”.
Anos depois do ataque foi revelado um documento secreto assinado pelo então secretário-assistente de Estado dos EUA, Lester Mallory, sobre a existência de um conjunto de medidas chamado “Programa de Ação Encoberta Contra o Regime de Castro”. O documento mostra que o antecessor de Kennedy, Dwight Eisenhower, iniciara um ano antes o programa de treinamento de exilados cubanos, pela CIA, com o objetivo de derrubar e matar Fidel.
Milhares de pessoas participaram do desfile, mas nem todos os presentes estavam lá por vontade próprio
O ataque acabou acontecendo no terceiro mês de governo de Kennedy, que segundo historiadores ficou sabendo do plano apenas na véspera de sua posse e, contrariado, impediu o uso de aviões da Força Aérea dos EUA na invasão, o que facilitou a defesa das tropas cubanas.
Em retaliação, a União Soviética instalou bases de lançamentos de mísseis nucleares na ilha, a apenas 170 quilômetros de Key West, na Florida. A descoberta das bases levou as duas superpotências à chamada Crise dos Mísseis, em 1962, marcando o ápice da Guerra Fria.
Do ponto de vista político, a invasão empurrou Fidel, que nos primeiros anos da revolução se declarava independente da influência soviética, diretamente para o colo de Moscou. Em 1998 o governo dos EUA admitiu oficialmente que a invasão da Baía dos Porcos foi uma atitude “ridícula, trágica ou ambas as coisas”.
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