Entrevista – com especialista em segurança pública Rodrigo Pimentel – que analisa os problemas que levaram à greve da PM, aponta soluções e ainda fala de algumas ações equivocadas do comando, que poderia ter evitado a paralisação (greve) na Bahia.

Osvaldo Lyra EDITOR DE POLÍTICA/

O especialista em segurança pública Rodrigo Pimentel é ex-capitão do Bope no Rio de Janeiro e um dos autores do livro “Elite da Tropa”, que deu origem ao filme “Tropa de Elite”. Nesta entrevista à Tribuna, ele analisa os problemas que levaram à greve da PM na Bahia, aponta soluções e diz que, diferente do Rio, onde o comando geral da PM exigiu o cumprimento do Código Penal Militar (que protege a hierarquia e a disciplina, obrigando a suspensão da greve por lá), na Bahia, a SSP optou por partir para o diálogo. Estratégia essa que se mostrou equivocada, sendo usada como parâmetro para evitar a paralisação carioca

Tribuna da Bahia – Como avalia essa onda de greves da Polícia Militar na Bahia e a ameaça no Rio de Janeiro?
Rodrigo Pimentel – Essa onda não é novidade no Brasil. Vamos lembrar que em 1996 e 1997 tivemos episódios em Fortaleza, ainda em 1997 tivemos episódio em Minas, em 1999 tivemos no Tocantins, em 2001 em Salvador, em São Luís-MA no ano passado. A radicalização do processo de disputa salarial dos militares não é uma novidade nos últimos anos. Isso já vem ocorrendo com a Constituição de 1988, que garantiu aos trabalhadores brasileiros uma série de direitos, excluindo boa parte dos policiais militares, que não tem uma jornada de trabalho regulada, eles não tiveram direito a greve, a ajuda de custo para transporte. Os PMs não tiveram essas vantagens que os outros trabalhadores tiveram. Aí você tem um detalhe interessante: o Artigo 142 da Constituição proíbe os policiais a terem sindicato, então não existe uma válvula de escape na valorização salarial, então tem toda uma analogia com relação à greve do setor privado. O que ocorre, então? As associações policiais, que não podem deliberar greve, porque a greve é proibida para eles, acabam fazendo assembleias ilegais e deliberando sobre esses assuntos. Uma grande associação como essa da Bahia, que tem dois mil filiados, não tem representatividade. Diferente dos sindicatos, ela anula a interlocução, não tem como conversar porque não existe um interlocutor legítimo. A ausência do sindicato cria uma figura assustadora, um líder que tenha a ideia mais ousada, mais radical, por exemplo, invadir uma Assembleia Legislativa. A ausência do sindicato cria o líder do momento, o líder do nervosismo, o líder do dia da paralisação, aquele que sobe no caminhão e fala mais alto do que os outros. Essa pessoa provavelmente não seria eleita para liderar um sindicato, porque o líder sindicalista, historicamente no Brasil, é uma pessoa de boa interlocução, de boa conversa.

Tribuna – Uma saída, então, seria tentar organizar, estruturar as polícias?
Pimentel – Você pode fazer uma rápida análise de quem são os líderes desses movimentos Brasil afora: Cabo Júlio, Dacciolo, Prisco, todos com o mesmo perfil. Não existe válvula de escape. Existe o pleito, que é sempre legítimo, sempre legal. Deixe eu te contar uma coisa. Os pilares da polícia hoje no mundo afora, na Europa, América do Norte, os pilares são transparência, controle e salário. Não se faz uma boa polícia se ela não tiver focada nesses pilares. Você pode até aumentar o controle, mas se não tiver um bom salário, a coisa não vai funcionar. Você pode até aumentar o salário, mas se você não tiver o controle, a coisa também não vai funcionar. Então, uma boa polícia hoje precisa de um bom salário, de um bom controle e de muita transparência.

Tribuna – O modelo de segurança que a gente tem hoje no país está falido?
Pimentel – Eu entendo o modelo atual como esgotado. Eu torço para que esse movimento não ocorra de novo no Brasil, mas vamos ser francos, está acontecendo. Aconteceu em 2001, aconteceu no ano passado com os bombeiros do Rio de Janeiro, aconteceu neste ano na Bahia, aconteceu em São Luís do Maranhão no ano passado. É evidente que toda a dureza do regulamento das polícias, do Código Penal Militar, toda a dureza do Código, toda a proibição do Artigo 142 não estão mais funcionando. No momento da busca pela melhoria salarial, o policial não vai querer nem saber, ele vai partir para a radicalização. O Exército brasileiro ao longo dos últimos 15 anos esteve presente em todos os movimentos, menos no dos bombeiros do Rio de Janeiro. O Exército brasileiro tem sido usado nos últimos anos prioritariamente nas missões de preservação da ordem pública nos momentos de greve das polícias militares e das civis. É evidente que esse modelo que não permite negociação, que não permite a greve, é um modelo que está falido. O que aconteceu no Rio de Janeiro? O comandante geral da polícia se sensibilizou, conversou com os policiais, o Bope, o batalhão de choque, a exemplo da polícia daí da Bahia, não entrou em greve, os policiais das UPPs, que são policiais muito novos, também não aderiram. Aqui no Rio, os policiais não se mobilizaram tanto em função do medo do regulamento.

Tribuna – Qual o sistema ideal que a gente deve ter para a segurança pública no país?
Pimentel – É preciso discutir a política salarial. Aqui no Rio de Janeiro, você tem soldado ganhando mil reais, mas aí você tem coronéis que ultrapassam o teto e ganham mais de R$ 20 mil. Aqui no Rio, tem inspetor da Polícia Civil recém-concursado ganhando R$ 2 mil, depois você tem a grande maioria dos delegados da Polícia Civil que atingiu o teto também, ganhando R$ 18 mil. Então, se um dia o nosso secretário (estadual) da Fazenda for falar, ele vai dizer ‘gente, olha só, o salário médio do policial do Rio de janeiro é um dos maiores do Brasil’ e ele estará falando a verdade. É preciso rever a política salarial, ver a questão do escalonamento, das gratificações, escalonar o salário de uma forma mais justa. Esse é um dos pleitos da polícia do Rio de Janeiro. Os governos estaduais, não só o da Bahia, tem um grande problema. Se você der R$ 100 para cada policial, você não resolve o problema e ainda gera um problemão na folha (de pagamento) do Estado. Não existe no Brasil uma política salarial (para os policiais), não existe a legalização, a formalização do movimento de greve, a greve é proibida. Aí se a gente perguntar o que fazer, então, para negociar uma melhoria salarial, ninguém saberia responder isso. Não só eu, mas acho que a maioria dos brasileiros, somos a favor do pleito pela melhoria salarial, mas radicalmente contra a realização de greve por parte dos policiais.

Tribuna – A integração entre as polícias Civil e Militar é uma necessidade, como muitos estados defendem?
Pimentel – Olha só, imagina o tamanho do problema que o Jaques Wagner teria na mão hoje se a Polícia Civil estivesse envolvida nessa greve da Bahia. Imagina o tamanho do problema que o Jaques Wagner teria. Com a unificação das polícias, você teria uma polícia certamente civil, não seria militar. O governador não teria esse regulamento de controle que ele tem hoje com a Polícia Militar se a polícia fosse civil. Vou te dar um exemplo aqui no Rio de Janeiro. A paralisação no Rio de Janeiro foi da Polícia Civil, da Polícia Militar e dos bombeiros. Aqui a paralisação só não vingou em função das ferramentas existentes, que é o regulamento e o Código Penal Militar. Cada comandante de batalhão recebeu hoje (sexta) pela manhã 90 % das viaturas que retornaram aos batalhões e os policiais disseram: ‘olha, não vamos voltar para as ruas’. O comandante do batalhão conversou com os policiais e disse: ‘olha, quem não voltar vai ser preso em flagrante e vai ser demitido sumariamente em 20 dias. Quem topa?’. Ninguém. Todo mundo voltou a trabalhar.

Tribuna – Então o problema seria pior com a Polícia Civil…
Pimentel – Verdade. Se você fizer a Polícia Civil, pode ter certeza, você não terá essa ferramenta. Essa ferramenta é uma ferramenta que só o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, os bombeiros e a Polícia Militar dispõem, que é o Código Penal Militar. Na prisão dos líderes grevistas aqui no Rio de Janeiro, uma das condições foi que eles ofenderam o comandante geral. Ofender o Comando Geral é crime militar. O comandante geral da Polícia Militar de um estado não pode ser injuriado, difamado por um subordinado. O Código Penal Militar protege a hierarquia e a disciplina. Como é que um policial pode chamar o comandante geral de covarde, de omisso? Não pode. Na Bahia, o comandante geral da Polícia Militar não utilizou essas ferramentas. Ele não usou porque não quis. Talvez ele não quisesse botar lenha na fogueira, não quisesse jogar querosene no fogo. Talvez ele tenha não se intimidado, talvez ele tenha usado a opção de não radicalizar a opressão ao movimento grevista. Como foi feito aqui no Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro também. Houve um grande consenso da sociedade carioca de que a greve era legítima, apesar daquela cena chocante do bombeiro furando o pneu e tocando fogo na viatura quando o colega estava indo dar um socorro, e ele retirou o colega da viatura impedindo que ele fosse lá salvar alguém. Olha que crime bárbaro. E ele foi anistiado por uma lei aprovada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O consenso da sociedade do Rio entendeu que esse bombeiro ganhava mal e tinha que ser anistiado. Eu acho que os comandantes da Polícia Militar no Brasil, no início dessas ondas grevistas, porque eles sabem que o pleito é legítimo, tentam esquecer o regulamento e negociar com bom senso. Mas está provado que isso não bate.

Tribuna – Foi um erro que aconteceu aqui na Bahia? A condução da greve na Bahia foi errada na sua avaliação?
Pimentel – Olha, eu não posso avaliar as variáveis que o comandante geral da Polícia Militar da Bahia tinha na mão. Mas eu sei o seguinte: a condução da greve na Bahia determinou a condução da greve no Rio de Janeiro. O comandante geral da Polícia Militar do Rio já tinha visto a situação daí e disse: ‘Ôpa, não vou fazer igual, não. Vou fazer diferente’. E fez diferente. Ontem (quinta) à noite, 11 líderes já tinham prisão preventiva decretada. Hoje (sexta) pela manhã um batalhão inteiro foi preso. Então, quando a tropa percebeu essa disposição do comandante geral da Polícia Militar de usar as ferramentas que ele tinha à disposição dele, a tropa se amedrontou. Aqui no Rio de Janeiro, existem duas forças de reserva, que é o Batalhão de Choque e o Batalhão de Operações Especiais, que somam mil homens. Essas forças de reserva ganham mais do que os policiais convencionais, eles ganham em torno de mil reais a mais, então se eles ganham mais eles são mais comprometidos, eles não querem perder a gratificação deles. Logicamente, tem também o fator auto-estima, eles são mais valorizados. Essa força de reserva foi utilizada logo pela manhã para debelar a greve. Enfim, eu não posso condenar a tentativa do comandante da Polícia Militar da Bahia de tentar conversar, de tentar partir para o diálogo, mas, com certeza, aqui no Rio de Janeiro o que foi feito foi em função do aprendizado da Bahia.

Tribuna – Como o senhor avalia os atos de vandalismo que aconteceram aqui na Bahia?
Pimentel – A cada manifestação de um policial por salário, eu sou imediatamente simpático. Eu sou simpático porque tenho certeza, tenho consciência de que a única possibilidade de você ter uma boa polícia é com um bom salário. Eu sei disso. Mas quando vi aqueles policiais militares fechando ruas, queimando ônibus escolar, quando vi aqueles policiais apontando a pistola para cima, de imediato, eu, não na condição de cidadão, na condição de ex-policial, passei a condenar o movimento, passei a ter antipatia pelo movimento, passei a achar o movimento inoportuno, criminoso. Sei que centenas de policiais da Bahia que participavam do movimento não concordavam com aqueles atos de vandalismo. No entanto, aqueles atos determinaram a pressão que o movimento estabelecia sobre o Governo da Bahia. Então, apesar de o Prisco dizer que condenava também, na verdade ele estimulava. Lamentável quando você percebe que o movimento parte para o banditismo.

Tribuna – Exemplos como os vividos aqui na Bahia podem se repetir no país?
Pimentel – Olha, eu usei até um termo carioca na GloboNews hoje (sexta) quando eu disse que esse movimento queimou o filme de todos os próximos movimentos dos policiais militares Brasil afora. A sociedade vai lembrar que os policiais militares quando realizaram um pleito, que em princípio tem simpatia da população, queimaram um ônibus escolar, mataram mendigos nas ruas e apresentaram suas armas na frente da televisão. Tem um fato que marcou o Brasil. Na época do ex-presidente Itamar Franco, a Polícia Federal fez uma paralisação em Brasília. A Polícia Federal ganhou naquele momento mais de 120% de aumento. A PF tinha péssimos salários, tinha uma disparidade salarial imensa, existiam agentes federais que ganhavam uma diferença salarial de 100% em relação a outro colega. Tinha agente que trabalhava na mesma delegacia e ganhava o dobro do outro colega. Então, aquela greve da Polícia Federal dobrou o salário dos policiais e naquele momento uma nova Polícia Federal nasceu. Uma Polícia Federal prestigiada, uma instituição que tem uma grande credibilidade no Brasil.

Tribuna – Quem na Bahia, além de Prisco, estaria por trás dessas movimentações? O senhor acha que teria interesse político por trás disso?
Pimentel – Eu acredito que não. É evidente que deputados Brasil afora se aproveitam desses momentos, se aproximam dessas associações e vários desses policiais se candidatam a cargos eletivos nas eleições para vereador, para deputado. O Júlio foi candidato em Minas e se elegeu. Mas uma articulação envolvendo partidos políticos para estimular essas ações, eu, sinceramente, não acredito. Acho que são ações isoladas. Aqui no Rio, uma deputada tentou entrar num quartel e foi expulsa pelo comandante. E os deputados de seu partido não concordaram com a atitude dela. Dizem que é uma atitude de sindicalista, mas não concordam. Eu acho que o que animou os policiais foi a questão da PEC 300. Eles pedem         R$ 3,5 mil, um valor que não foi estudado, que não foi regionalizado. É um absurdo o policial ter um piso nacional. O Brasil não tem equilíbrio entre as capitais. Salvador é muito mais caro, por exemplo, do que Porto Velho, Rio de Janeiro é mais caro do que Salvador. O piso nacional é uma coisa que não tem razoabilidade.

Tribuna – E qual seria a medida mais correta a ser adotada nesse momento? De repensar o modelo de segurança pública do nosso país?
Pimentel – Cada estado precisa ter sua própria solução. Têm estados mais fortes do que outros. Tem estado que pode buscar a valorização da Polícia Militar. A verdade é a seguinte, eu posso desconstitucionalizar hoje a polícia. Eu não preciso obrigar hoje um estado a ter Polícia Militar. O ente federativo Bahia pode pensar a questão da segurança pública de forma local. Eu acho que cada estado deveria criar sua solução. Eu sou sempre questionado se sou a favor da unificação das polícias. Vou dar um exemplo. Os Estados Unidos têm hoje polícias organizadas, integradas, que trocam informações. Só agentes federais nos EUA são mais de 40. Então, unificação não é a solução. Pode ser a solução da Bahia, pode ser a solução do Rio, mas pode não ser a solução no Amapá, no Rio Grande do Sul. Não existe um modelo que seja tão perfeito e tão bom que possa ser introduzido nos 27 estados da federação. Cada estado deveria buscar seu modelo, mas esse modelo hoje está amarrado pela Constituição. Lá diz que cada estado tem que ter uma polícia militar. Diz também que cada estado tem que ter delegado de polícia.

Tribuna – A gente está às vésperas do Carnaval e o Rio Janeiro e Salvador têm uma expressão muito grande neste momento. A população deve ter algum tipo de medo ou receio de ir à festa?
Pimentel – Eu creio que não. Mais uma vez eu antipatizo com este movimento neste momento tão importante que é o Carnaval. Eu acho que houve uma atitude muito covarde dos dois movimentos. Aqui no Rio, hoje o policiamento está funcionando tranquilamente. Na Bahia, a gente tem a informação de que o Exército vai permanecer até o Carnaval. Então, eu acho que não existe risco para a população que vai curtir o Carnaval. Mas, lembrando que a Bahia antes mesmo da greve já passava por um momento ruim na segurança pública.
Colaborou: Romulo Faro