da Revista Veja
Os adolescentes e jovens brasileiros começam a vencer o arraigado preconceito contra os homossexuais, e nunca foi tão natural ser diferente quanto agora. É uma conquista da juventude que deveria servir de lição para muitos adultos
Apresentar boletim escolar com notas ruins, bater o carro novo da casa, arrumar inimizade com o vizinho já são situações difíceis de enfrentar diante do tribunal familiar, com aquela atemorizante combinação de intimidade com autoridade dos pais. Imagine parar ali diante deles e dizer a frase: “Eu sou gay”. Não é fácil para quem fala, menos ainda para quem ouve. As mães se assustam, mas logo o amor materno supera o choque do novo. Os pais demoram mais a metabolizar a novidade. A orientação sexual ainda é e vai ser por muito tempo uma questão complexa e tensa no seio das famílias. Isso muda muito lentamente. O que mudou muito rapidamente, porém, foi a maneira como a homossexualidade é encarada por adolescentes e jovens no Brasil. Declarar-se gay em uma turma ou no colégio de uma grande cidade brasileira deixou de ser uma condenação ao banimento ou às gozações eternas. A rapaziada está imprimindo um alto grau de tolerância a suas relações, a um ponto em que nada é mais feio do que demonstrar preconceito contra pessoas de raças, religiões ou orientações sexuais diferentes das da maioria.
Longe do estereótipo: “Sempre tive atração por meninas, só que morria de vergonha de me aproximar delas e revelar o que sentia. Precisei de alguns anos para aceitar, eu mesma, a ideia. Foi na internet que consegui arranjar a primeira namorada. Quando a coisa ficou séria e eu quis levá-la a minha casa, contei a meus pais, que, como era esperado, sofreram. Meus amigos também já sabem que sou homossexual. No começo, estranharam. Nunca me enquadrei no estereótipo da menina gay, masculinizada, mas não tenho dúvida quanto à minha opção. O melhor: depois de um processo difícil, isso acabou se tornando natural para mim e para todos à minha volta.” Harumi Nakasone (sentada à esq.), 20 anos, estudante de artes visuais em Campinas
Esses meninos e meninas estão desfrutando uma convivência mais leve justamente em uma fase da vida de muitas incertezas, quando a aceitação pelos pares é decisiva para a saúde emocional e mental. Isso é um avanço notável. Por essa razão talvez, a idade em que um jovem acredita que definiu sua preferência sexual tem caído. Uma pesquisa feita pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro (Uerj) e de Campinas (Unicamp) tem os números: aos 18 anos, 95% dos jovens já se declararam gays. A maior parte, aos 16. Na geração exatamente anterior, a revelação pública da homossexua-lidade ocorria em torno dos 21 anos, de acordo com a maior compilação de estudos já feita sobre o assunto. À frente do levantamento, o psicólogo americano Ritch Savin-Williams, autor do livro The New Gay Teenager (O Novo Adolescente Gay), resumiu a VEJA: “O peso de sair do armário já não existe para os jovens gays do Ocidente: tornou-se natural”.
Os jovens que aparecem nas páginas desta reportagem, que em nenhum instante cogitaram esconder o nome ou o rosto, são o retrato de uma geração para a qual não faz mais sentido enfurnar-se em boates GLS (sigla para gays, lésbicas e simpatizantes) – muito menos juntar-se a organizações de defesa de uma causa que, na realidade, não veem mais como sua. Na última parada gay de São Paulo, a maior do mundo, a esmagadora maioria dos participantes até 18 anos diz estar ali apenas para “se divertir e paquerar” (na faixa dos 30 o objetivo número 1 é “militar”). A questão central é que eles simplesmente deixaram de se entender como um grupo. São, sim, gays, mas essa é apenas uma de suas inúmeras singularidades – e não aquela que os define no mundo, como antes. Explica o sociólogo Carlos Martins: “Os jovens nunca se viram às voltas com tantas identidades. Para eles, ficar reafirmando o rótulo gay não só perdeu a razão de ser como soa antiquado”. Ícone desses meninos e meninas, a cantora americana Lady Gaga os fascina justamente por ser “difícil de definir o que ela é”. São marcas de uma geração que, não há dúvida, é bem menos dada a estereótipos do que aquela que a precedeu. Diz, com a firmeza típica de seus pares, a estudante paulista Harumi Nakasone, 20 anos: “Nunca fiz o tipo masculino nem quis chocar ninguém com cenas de homossexualidade. Basta que esteja em paz e feliz com a minha opção”.
A mãe torce para que ele ache um bom companheiro “Aos 16 anos, quando contei à minha mãe que preferia os homens às mulheres, ela ficou possuída de raiva. Eu achava que a notícia não causaria tanta comoção. Não havia aberto o jogo sobre minha sexualidade, mas tinha certeza de que minha mãe já desconfiava. Nunca levava garotas em casa nem falava delas. O dia em que contei tudo, no entanto, foi um divisor de águas para nós dois. A relação ficou muito tensa. É interessante como a coisa, depois, vai sendo assimilada. Ela abandonou o sonho de me ver chefe de uma família tradicional e, no lugar disso, passou a sonhar com um bom companheiro para mim. Isso ainda não aconteceu. Hoje, no entanto, minha vida é ótima. Não escondo das pessoas de que mais gosto o que realmente sou.” Gabriel Taverna, 19 anos, estudante de São Paulo
A tolerância às diferenças, antes verificada apenas no ambiente de vanguardas e nas rodas intelectuais e artísticas, está se tornando uma regra – especialmente entre os escolarizados das grandes cidades brasileiras. Uma comparação entre duas pesquisas nacionais, distantes quase duas décadas no tempo, dá uma ideia do avanço quanto à aceitação dos homossexuais no país. Em 1993, uma aferição do Ibope cravou um número assustador: quase 60% dos brasileiros assumiam, sem rodeios, rejeitar os gays. Hoje, o mesmo porcentual declara achar a homossexualidade “natural”, segundo um novo levantamento com 1?500 adolescentes de onze regiões metropolitanas, encabeçado pelo instituto TNS Research International. O mesmo estudo dá outras mostras de como a maior parte dos jovens brasileiros já se conduz pela tolerância em vários campos: 89% acham que homens e mulheres têm exatamente os mesmos direitos e em torno de 80% se casariam com alguém de outra raça ou religião. “À medida que as pessoas se educam e se informam, a tendência é que se tornem também mais intransigentes com o preconceito e encarem as questões à luz de uma visão menos dogmática”, diz a psicóloga Lulli Milman, da Uerj. Foi o que já ocorreu em países de alto IDH, como Holanda, Bélgica e Dinamarca. Lá, isso se refletiu em avanços na legislação: casamentos gays e adoção de crianças por parte desses casais são aceitos há anos. No Brasil, onde não há leis nacionais como essas, a apreciação fica sujeita a cada tribunal.
Recém-saídos do armário: Reprimidas durante anos, celebridades das mais diversas áreas resolveram vir a público nos últimos meses para assumir-se gays com estardalhaço: da esquerda para a direita, a cantora gospel Jennifer Knapp, o jogador de rúgbi galês Gareth Thomas e o cantor Ricky Martin
Ainda que o preconceito persista em alguns círculos, atingiu-se um estágio de evolução em que professá-lo se tornou um gesto condenável pela maioria – um sinal de progresso no Brasil. Nas Forças Armadas, onde a aversão a gays sempre se pronunciou em grau máximo (apesar de o regimento interno repudiar a perseguição aos homossexuais), a diferença é que, agora, quando surge um caso desses entre os muros do Exército, o assunto logo suscita indignação. Ocorreu com um general que, neste ano, veio a público posicionar-se contra a presença de gays nas Forças Armadas. Sob pressão, precisou retratar-se. Recentemente, o lutador de vale-tudo Mar-celo Dourado, 38 anos, surgiu no programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, dizendo que “homem hétero não pega aids”. Além de uma bobagem, a declaração foi tachada de preconceituosa – e a Globo precisou ocupar seu horário nobre com as explicações do Ministério da Saúde sobre o tema. Mesmo que às vezes usados como bandeira por bandos de militantes paparicados por políticos em busca de votos, pode-se dizer que tais episódios apontam para uma direção positiva. Afirma o filósofo Roberto Romano: “A experiência mostra que o desconforto com o preconceito cria um ambiente propício para que ele vá sendo exterminado”.
Não era uma fase: “No início da adolescência, já me sentia atraída por meninas. Aluna de um colégio de freiras, havia crescido ouvindo que o amor entre pessoas do mesmo sexo era algo imperdoável, mas nunca vi a coisa assim. A mim, parecia natural. Aos 14, até tentei namorar um menino. Não funcionou. Um ano depois, quando me apaixonei de verdade por uma garota, resolvi contar a meus pais. Minha mãe repetia: ‘Calma que passa, é uma fase’. A aceitação da ideia é um processo lento, que envolve agressões de todos os lados e decepção. Sei que contrariei o sonho da minha família, de me ver de grinalda e com filhos, mas a melhor coisa que fiz para mim mesma foi ser verdadeira. Por que me sentir uma criminosa por algo que, afinal, diz respeito ao amor?” Amanda Rodrigues, 18 anos, estudante de artes visuais no Rio de Janeiro
OS GAYS NA ARTE: Homossexualidade contida na tela de Caravaggio (à esq.) e escancarada na taça romana do século I
A notícia de que um filho é homossexual continua a causar a dor da decepção a pais e mães (descrita pela maioria dos ouvidos por VEJA como “a pior de toda a vida”). Com pavor de uma reação violenta do pai, meninos e meninas preferem, em geral, contar primeiro à mãe. “Quando meu filho me disse que gostava de meninos, sabia que os velhos sonhos teriam de ser substituídos por algo que eu não tinha a menor ideia do que seria”, relata a analista financeira paulista Suerda Reder, 41 anos. É com o tempo que a vida vai sendo reconstruída sob novas expectativas. Dois anos depois da revelação, o namorado de Victor, filho de Suerda, frequenta sua casa sem que isso seja motivo de constrangimento. Muitos pais já compreendem (com algumas idas e vindas) que, ao apoiar os filhos, estão lhes prestando ajuda decisiva. “Quando a própria mãe trata o fato com naturalidade, a tendência é que o preconceito em relação a ele diminua”, diz a estilista gaúcha Ana Maria Konrath, 55 anos, em coro com uma nova geração de mães – também mais tolerantes. O que elas sabem por experiência a ciência em parte já investigou. Segundo um estudo americano, conduzido pela Universidade Estadual de São Francisco, jovens gays que convivem em harmonia com os pais raramente sofrem de depressão, doença comum entre vítimas de preconceito.
Assumidos, mas discretos: “Aos 15 anos, depois de alguns flertes com meninos e nenhuma relação com meninas, conheci meu atual namorado. Apaixonado e angustiado por viver escondido, achei que não havia outro caminho senão abrir a questão para os meus pais. Até hoje, não falamos muito sobre o assunto, mas eles já aceitam a situação, e até levo o Leandro para dormir lá em casa. Às vezes, andamos de mãos dadas, mas não trocamos beijos em público. Não preciso ficar expondo minha sexualidade. Prefiro as boates que meus amigos, gays ou não, frequentam ao circuito GLS.” Victor Guedes, 19 anos, produtor de moda (à esq.), com o namorado Luiz Leandro Caiafa, 20, estudante de ensino técnico no Rio de Janeiro
“Nunca me escondi”: “Cheguei a beijar garotas, mas foi só quando troquei o primeiro beijo com um menino, aos 14 anos, que senti uma emoção real. Era tão claro para mim que resolvi contar a meus amigos mais próximos da escola que era gay. A princípio, eles estranharam. Cheguei a ser alvo de olhares tortos e gritos de ‘bicha’, mas logo passou. Quando contei a meus pais, no ano passado, eles no fundo já sabiam. Nunca me preocupei em levar garotas para casa só para me passar pelo que não era. Também não tenho necessidade de ficar me reafirmando gay na frente dos outros. Isso é bobo demais. Para mim, é só mais uma de minhas características.” Hector Gutierrez, 17 anos, estudante do 3º ano do ensino médio numa escola particular de Minas Gerais
Um conjunto de fatores ajuda a explicar o fato de a atual geração gay ser mais livre de amarras – alguns de ordem sociológica, outros culturais. Um ponto básico se deve à sua aceitação por outros adolescentes. Para esses jovens, o conceito de tribo perdeu o valor, como chamou atenção o antropólogo americano Ted Polhemus, por meio de suas pesquisas. Ele apelidou essa geração de “supermercado de estilos” – ou só “sem rótulos”. Nesse contexto, não há mais lugar para algo como o grupo em que apenas ingressam os gays ou os negros, algo que as escolas brasileiras já ecoam. Antes fonte de tormento para alunos homossexuais, alvo de piadas, quando não de surras e linchamentos, o colégio se tornou um desses lugares onde, de modo geral, impera a boa convivência com os gays. Um sinal disso é que a ocorrência de casos de bullying por esse motivo tem caído gradativamente. “É também mais comum que eles andem de mãos dadas no recreio, sem ser importunados, ou que se tornem líderes de turma”, conta a pedagoga Rita de Cássia, da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Os próprios colégios reconhecem que, no passado, conduziam a questão à sombra de certo preconceito. “Se surgia um aluno gay, tratava-se imediatamente o assunto como um problema, e os pais eram logo chamados”, lembra Vera Malato, orientadora no Colégio Bandeirantes, em São Paulo. “Hoje a postura é apenas dar orientação ao aluno se for preciso.”
Para boa parte dos jovens gays de hoje, a vida subterrânea nunca fez sentido. Diz o produtor de moda carioca Victor Guedes, 19 anos: “Desde que ficou claro para mim que meu interesse era pelo sexo masculino, não pensei em esconder isso dos meus pais. Só esperei a hora certa para abrir o jogo, com todo o tato”. É gritante o contraste com as gerações anteriores, às quais lança luz o livro Cuidado! Seu Príncipe Pode Ser uma Cinderela (a ser lançado pela editora Best Seller), das jornalistas Consuelo Dieguez e Ticiana Azevedo. O conjunto de depoimentos ali reunido revela o sofrimento diário enfrentado por políticos, diplomatas e figurões do mercado financeiro que nunca saíram do armário.
“Meus sonhos precisaram ser reconstruídos”: “Acho que toda mãe percebe, a contragosto e com dor, quando seu filho é gay. Sempre tive certeza disso em relação ao Igor, mas alimentava esperanças de que ele mudasse. Cheguei a rezar anos a fio por um milagre. No dia em que meu filho finalmente se abriu comigo, aos 17 anos, fiquei sem chão. Passado o choque, entendi que meus sonhos em relação a ele precisariam ser completamente reconstruídos. Não escondo mais de ninguém que meu filho é homossexual. Sinto que o fato de uma mãe tomar essa iniciativa ajuda a espantar o preconceito. Sempre que arranja um namorado, ele frequenta a minha casa e saímos juntos. Meu filho está feliz. Não é isso que todos nós buscamos?” Ana Maria Konrath, 55 anos, estilista gaúcha, mãe de Igor Konrath, 20, estudante de comunicação social
Ao longo da última década, a indústria do entretenimento tem refletido, de forma acentuada, as mudanças culturais em relação à sexualidade. Na televisão, nunca houve tantas séries retratando o universo gay. Entre as produções de maior sucesso, figuram o seriado americano Glee, que tem como um dos protagonistas um adolescente recém-assumido gay para o pai, e The L Word,sobre um grupo de lésbicas atraentes e chiques de Los Angeles. Nas novelas brasileiras, os homossexuais já não são mais tratados de maneira tão caricatural. “É possível exibir na TV a vida comum de casais gays sem que isso provoque a rejeição do público, como no passado. Hoje, esses personagens fazem o maior sucesso”, analisa Manoel Carlos, autor da atual novela das 8,Viver a Vida. Isso não só ajuda a levantar o diálogo sobre a homossexualidade em casa como ainda minimiza a resistência a ela. O rol de celebridades que se assumem gays também cumpre, em certo grau, esse papel. O último a deixar o armário foi o cantor porto-riquenho Ricky Martin, autor do sucesso Livin’ la Vida Loca, que, aos 38 anos, declarou ser gay em tom profético: “Hoje aceito minha homossexualidade como um presente que a vida me deu”.
A atual geração jamais espera tanto. A idade precoce com que os gays trazem à tona sua orientação sexual chama a atenção dos especialistas. Aos 16 anos, estão ainda na adolescência – uma fase de experimentação e dúvidas. Pondera a doutora em psicologia Ceres Araujo: “Esperar que essa escolha seja eterna para todos é uma simplificação. O que dá para afirmar é que esses jovens têm grande propensão de seguir se relacionando com pessoas do mesmo sexo”. Para eles, a homossexualidade está longe de ter a conotação negativa de tantos outros períodos da história. Durante as trevas da Inquisição, arremessavam-se os gays à fogueira. Na Inglaterra do século XIX, eles eram considerados nada menos que criminosos. Em 1895, num dos mais famosos julgamentos de todos os tempos, o escritor irlandês Oscar Wilde, homossexual assumido, foi acusado de sodomia e comportamento indecente. Penou dois anos na prisão. Na Hollywood dos anos 50, o agente do galã Rock Hudson arranjou, às pressas, um casamento de fachada para o ator, com uma secretária. Às voltas com fofocas sobre sua homossexualidade, ele corria o risco de perder contratos. Só em 1985, aos 59 anos e vitimado pela aids, doença que o mataria naquele ano, Hudson se assumiu gay. Num cenário inteiramente diferente, os novos gays não precisam mais passar por esse tormento. Resume o estudante mineiro Hector Gutierrez, 17 anos – típico da geração tolerância: “O dia em que eu contei a verdade a todos foi o primeiro em que me senti realmente livre e feliz”.
Ele conta tudo no Twitter: “Solitário, aos 14 anos resolvi dividir com a minha irmã aquilo que já era muito claro para mim: gostava de meninos, e sabia que isso decepcionaria minha família. Ela chorou, disse que logo essa fase passaria, e o pior: contou para todo mundo. Minha família chegou a me encaminhar ao psicólogo. Depois, à igreja. Não foi fácil, mas o alívio de compartilhar a situação me transformou em outra pessoa. Pouco falo sobre meus namoros, e agiria da mesma forma se eles fossem com meninas. Fico, no entanto, bem à vontade para falar de minha vida amorosa no Twitter, no qual tenho mais de 1 700 seguidores. De onde menos se espera às vezes ainda vem uma agressão gratuita, mas a coisa está mudando para melhor.” Lucas El-Osta, 17 anos, estudante do 2º ano do ensino médio no Rio de Janeiro
União estável de homossexuais
O Supremo Tribunal Federal (STF) se prepara para decidir, pela primeira vez na história, sobre o mérito de uma questão controversa: o regime jurídico das uniões estáveis previsto no Código Civil poderá ser estendido aos casais homossexuais. Os ministros julgarão uma ação proposta pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que sugere o reconhecimento legal da união estável de casais de gays e lésbicas. A ação já recebeu parecer favorável da Advocacia-Geral da União, em junho. Não caberá aos ministros decidir se duas pessoas do mesmo sexo têm o direito de viver juntas, o que já é uma realidade no país, mas sim se as leis brasileiras devem tratar tal relacionamento da mesma maneira como fazem com um homem e uma mulher. Entenda a atual situação dos casais gays no país – e o que pode mudar caso a ação seja aprovada.
1. O que propõe a ação movida por Cabral??
A ação, uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, pede que o casamento entre homossexuais seja considerado união estável. Assim, a união estável de pessoas do mesmo sexo teria, diante da Lei, o valor de uma união entre parceiros heterossexuais. Os casais homossexuais passariam a ter direito, por exemplo, a pensão em caso de morte do cônjuge, pensão alimentícia e herança. Cabral optou por esse tipo de ação porque, de acordo com ele, o tratamento diferenciado aos casais gays é um desrespeito à Constituição. A ação afirma que os princípios constitucionais violados são a igualdade, a liberdade e dignidade da pessoa humana, além da segurança jurídica.
2. Essa forma de união pode ser considerada casamento?
Não, já que não se trata apenas de uma equiparação plena de direitos. Ainda assim, é muito próxima disso. Caso aprovada, a proposta seria um dispositivo legal que garantiria aos gays seu reconhecimento como casal, mas não lhes daria as mesmas garantias que os casados têm, como a permissão para adotar o sobrenome do companheiro. Ainda assim, é um grande avanço, tendo em vista que, atualmente, a união entre homossexuais juridicamente não existe nem pelo casamento, nem pela união estável, e configura apenas sociedade de fato – ou seja, em caso de separação, por exemplo, as uniões gays não são julgadas em varas de família, mas em varas cíveis, apenas para tratar da divisão de bens. A união homossexual é tratada, basicamente, como um acordo comercial.
3. É a primeira vez que uma ação desse tipo chega ao STF?
Não. Em 2006, chegou ao Supremo uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação Parada do Orgulho Gay, que contestava a definição legal de união estável: “entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”, segundo o artigo 1.723 do Código Civil. A ação não chegou, no entanto, a ser julgada no mérito. Ela foi extinta pelo seu relator, o ministro Celso de Mello, por razões técnicas. Mello indicou como instrumento correto para tratar da questão uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, e não uma Adin. O ministro também disse que a união homossexual deve ser reconhecida como entidade familiar e não só como “sociedade de fato”.
4. O que diz a legislação brasileira a respeito da união entre homossexuais?
O GALÃ E A DIVA: O ator Rock Hudson (à esq.), que manteve casamento de fachada, e Lady Gaga, atual ícone dos jovens gays
No Brasil, a diversidade de sexo é exigida para configurar união estável. A Constituição Federal, em seu artigo 226, parágrafo 3º, estabelece que “para efeito da proteção do estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Já o Código Civil, em seu artigo 1.723, reconhece como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Em nenhum momento a união entre homossexuais é citada.
5. Quais direitos os casais do mesmo sexo já possuem no Brasil?
Alguns tribunais brasileiros já firmaram jurisprudência em conceder a casais homossexuais direitos em relação à herança (metade do patrimônio construído em comum pode ficar para o parceiro); plano de saúde (inclusão do parceiro como dependente); pensão em caso de morte (recebimento se o parceiro for segurado do INSS); guarda de filho (concessão em caso de um dos parceiros ser mãe ou pai biológico da criança) e emprego (a opção sexual não pode ser motivo para demissão).
6. Quais as principais diferenças, em termos jurídicos, de casais hétero e homossexuais que mantenham uniões estáveis?
Os casais gays não são reconhecidos como entidade familiar, mas sim como sócios. Isso faz com que, em caso de emergência, um homossexual não possa autorizar que seu marido ou esposa seja submetido a uma cirurgia de risco. Além disso, casais do mesmo sexo não podem somar renda para aprovar financiamentos, não somam renda para alugar imóvel, não inscrevem parceiro como dependente de servidor público, não têm garantia de pensão alimentícia em caso de separação, não têm licença-maternidade para nascimento de filho da parceira, não têm licença-luto (para faltar ao trabalho na morte do parceiro), não têm usufruto dos bens do parceiro, não têm direito à visita íntima na prisão, não fazem declaração conjunta do imposto de renda e não podem deduzir no IR o imposto pago em nome do parceiro.
7. Há estados em que a união civil homossexual é reconhecida?
Sim. No Rio Grande do Sul, os cartórios trabalham desde 2004 com uma norma que possibilitou aos casais homossexuais com algum tipo de união estável fazer um registro nesse sentido. Nesse estado, processos que envolvem relações homossexuais são julgados pela Vara de Família. Já o Rio de Janeiro foi, em 2007, o primeiro estado a conceder pensão a parceiros e parceiras de homossexuais.
8. Como o governo lida com a questão do homossexualismo?
O governo lançou em 2006 o programa Brasil sem Homofobia, com o objetivo de combater a violência e a discriminação contra homossexuais. O programa apóia projetos de fortalecimento de instituições públicas e não-governamentais que atuam na promoção da cidadania homossexual e no combate à homofobia, além de capacitar profissionais e ativistas que atuam na defesa dessas pessoas. Em 2004, o Brasil apresentou nas Nações Unidas uma resolução que classifica o homossexualismo como direito humano inalienável. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu, em 2008, a 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, em Brasília. Lula não possui, porém, um bom histórico em relação aos homossexuais — em 2000, o petista chamou a cidade gaúcha de Pelotas de “pólo exportador de veados”.
9. Há outros projetos de lei que regulamentam o casamento entre homossexuais?
Sim. Desde 1996, o Congresso tem entre seus projetos uma proposta, de autoria da ex-ministra do Turismo, Marta Suplicy, que autoriza a parceria civil entre homossexuais no Brasil. Em todos esses anos, a proposta sequer chegou a ser votada. Caso fosse aprovada reconheceria, no papel, a união de casais do mesmo sexo, o que já existe na prática.
10. Em quais países o casamento gay é legalizado?
Na Holanda, desde 2001, os direitos de casamento valem para todos os cidadãos, sem distinção, no texto da lei, entre homossexuais e heterossexuais. Não há nem mesmo como saber quantos casamentos gays já foram realizados no país, já que os registros não dão conta se os noivos eram do mesmo sexo. A união civil entre gays também é aceita na Bélgica, no Canadá, na França, na Espanha, no Uruguai, nos estados americanos de Massachusetts e Califórnia e na capital argentina, Buenos Aires.
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