Greve Ilegal da PM: uma versão surrealista de Tropa de Elite “- A greve da polícia civil ou da polícia militar (para os militares a vedação de greve é expressa na Constituição Federal) põe em risco eventual a vida das pessoas, bem jurídico mais elevado, e atinge diretamente a vida do Estado Democrático de Direito, ao obstruir o exercício das atividades dos Poderes Legislativo, Judiciário e demais serviços do Executivo, além de obstacularizar a economia.”

Nadjara Lima Régis, advogada e procuradora geral do Município

Essa greve dos policiais me traz lembranças de Não verás país nenhum, de Ignácio Loyola Brandão, e de José Saramago, em As Intermitências da Morte. Afinal, é ou não é um surrealismo fantástico, de um dia para o outro, toda família conquistense se vir presa em sua própria casa durante a inteira luz do dia… É ou não é surrealismo fantástico a idéia de existir Estado sem monopólio da força, civilização sem o olho invisível da polícia… É ou não é surrealismo justamente a categoria do funcionalismo social responsável por garantir, por meio do valor simbólico da força, o cumprimento da lei, ingressar na luta dos trabalhadores por condições salariais ocupando prédios, fazendo passeatas, carreatas, desconhecendo o Poder Judiciário, contextualizando arrastões para furtos e roubos a pessoas e estabelecimentos comerciais… Isso não é o mesmo que, de um dia para outro, deixar cada pessoa de morrer, independentemente do mais terrível acidente que sofra, como imaginou Saramago? Quanto a Loyola, destaco-lhes da citada obra essa partícula:“Chegamos a este ponto. Aceitar os Civiltares como necessá¬rios, suportá-los e chamá-los, de vez em quando. Para mim, ter que fazer isso um dia vai ser pior que tomar óleo de rícino”.

Quem não sabe que saiba: greve na instituição da polícia é ilegal, já disseram juízes singulares, Tribunais de Justiça e Ministros do Supremo Tribunal Federal. Simplesmente porque, e faço mais uma apologia a Loyola, “por menos que se goste deles, é preciso reconhecer: evitam catástrofes nesta cidade. Pior sem eles”.

Ministros do Supremo se manifestaram na forma de opinião e de decisão sobre o assunto. O Ministro Eros Roberto Grau, julgando a Reclamação STF 6568, concluiu “a conservação do bem comum exige que certas categorias de servidores públicos sejam privadas do exercício do direito de greve”. O Ministro-Presidente, Cézar Peluso, no julgamento da Ação Cautelar 3034, que visava suspender liminar concessiva do direito de greve à polícia civil do Distrito Federal, em dezembro do ano passado entendeu que o direito de greve do servidor público não é absoluto, que as restrições têm fundamento nos valores que incumbem a cada categoria – se incontornáveis à subsistência do Estado, e reiterou seu pensamento transcrevendo um trecho de um dos seus votos anteriores: “a concluir que os policiais não têm direito de greve, assim como não o têm outras categorias, sobre as quais não quero manifestar-me na oportunidade, porque seria impertinente. E não o têm, porque lhes incumbem, nos termos do artigo 144, caput, dois valores incontornáveis da subsistência de um Estado: segurança pública e a incolumidade das pessoas e dos bens. Ora, é inconcebível que a Constituição tutele estas condições essenciais de sobrevivência, de coexistência, de estabilidade de uma sociedade, de uma nação, permitindo que os responsáveis pelo resguardo desses valores possam, por exemplo, entrar em greve, reduzindo seu efetivo a vinte por cento”. E ao final da decisão, Peluso transcreveu extenso trecho do entendimento do Min. Eros Grau, que transponho na forma de imagem:

Em outra oportunidade, aquém de julgamento de caso concreto, à época que exerceu a Presidência do STF, o Ministro Gilmar Mendes afirmou: “Só o fato de um movimento paredista de pessoas armadas é suficiente para uma reflexão. Não é uma greve pacífica por definição. Sempre há o potencial de conflito, quem exerce parte da soberania não pode fazer greve”. Opinião no mesmo sentido foi manifestada pelo Ministro Celso de Mello, ao dizer que a greve da polícia afeta a sociedade: “São atividade essenciais que não podem ser atingidas por tais movimentos.”
A greve da polícia civil ou da polícia militar (para os militares a vedação de greve é expressa na Constituição Federal) põe em risco eventual a vida das pessoas, bem jurídico mais elevado, e atinge diretamente a vida do Estado Democrático de Direito, ao obstruir o exercício das atividades dos Poderes Legislativo, Judiciário e demais serviços do Executivo, além de obstacularizar a economia. Em Vitória da Conquista, os trabalhos da Câmara Municipal ainda não foram abertos, o calendário escolar não pode ser cumprido nas escolas públicas e particulares da rede municipal de educação, o transporte coletivo foi retirado das ruas impedindo o direito de ir e vir da população, o comércio e os bancos fecharam, ocorrendo igualmente com estabelecimentos de saúde. Capaz de desarticular toda a dinâmica de um Município, o caráter abusivo é inerente a greve de policiais pela própria natureza do serviço prestado: segurança pública.
Não raro, a greve nesse segmento desmoraliza os Poderes Constitucionais, o que não ocorre na greve exercida em outros segmentos sociais, e tem o condão, a depender do tempo de duração, de trazer à luz uma verdadeira guerra civil – basta-nos imaginar a polícia civil e militar, de todo o país, paralisadas. Por isso mesmo, gera um cenário social com força coativa suficiente para ‘extorquir’, do Executivo, vantagens pleiteadas.

Demonstrando o profundo compromisso que tem consigo mesmo, o deputado federal Mendonça Prado, do Partido Democratas, em Sergipe, às vezes de contribuir para o fim da greve da PM na Bahia, defendeu a não prisão dos líderes da greve ilegal dizendo que a polícia baiana recebe solidariedade de todos os policiais do Brasil, conforme matéria no Correio da Bahia online. Esqueceu ele, no entanto, da estudante Jaqueline, submetida a extorsão mediante seqüestro e vítima de violência física por parte de três mulheres e três homens que sarcasticamente lhe disseram que não lhe restava polícia para apelar. Esqueceu, também, das balas perdidas que saíram das áreas periféricas para o centro da cidade. Alguém – pasmem–, questionou-me ao pensar que o comando dessa greve, por ser ilegal, deveria ser alçado a colaborador intelectual dos crimes praticados contra essas vítimas, por incitação conveniente a desordem pública, demonstrando abertamente a paralisação total de suas atividades, com carreatas, passeatas e outros modos.

Sabemos, e muitas vezes a comunidade de Vitória da Conquista demonstrou sua solidariedade à luta dos policiais por melhores condições de vida, que a remuneração não equivale ao risco de vida diária por que passa cada mãe ou pai de família policial, em prol da segurança pública. Sobretudo quando se quer alcançar um cenário de eficiência e não corrupção. Sem a reforma tantas vezes sugerida à organização das polícias, a PEC 300 não pode ser engavetada. A defasagem dos vencimentos da categoria é tão histórica que os salários permanecem insatisfatórios mesmo com o ganho real de 29,40%, alcançado, desde 2006, no governo Wagner (nenhuma outra categoria alcançou esse ganho), pela polícia baiana considerada a que percebe melhores rendimentos dentre os policiais do Rio de Janeiro, Rondônia, Acre, Rio Grande do Sul, Pará, Amazonas, Roraima, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco. Em matéria no Correio da Bahia, a Associação dos Oficiais da Policia Militar (AOPM) foi citada para confirmar que o rendimento bruto inicial do soldado baiano é de R$ 2.117,22, maior do que a média nacional de R$1.020,00, somando-se a isto a conquista do auxílio alimentação. Resta-nos admitir que a luta seja justa, sob o ponto de vista ideal, não tão justa, sob o ponto de vista relativo; o modo da luta, ilegal.

E admitir também que o enfraquecimento estrutural do movimento sindical vulgarizou a greve, porque os trabalhadores limitam sua participação ao caráter imediato da reivindicação salarial e desconhecem ou desqualificam sua intervenção intelectual no processo de transformação social e econômica. A ontologia da greve coloca-a como meio drástico de discussão da classe trabalhadora com o capital privado, discussão a respeito da mais-valia. A admissão de greve aos servidores do Estado – e o Estado não se estrutura sobre a mais-valia – não deixa de ser uma contradição teórica, justificável perante a finalidade de dignidade humana repercutida ao salário por meio do cálculo de seu poder aquisitivo. Foi-se admitindo, na política, a greve aos servidores em decorrência das situações de instabilidade econômica, com os cenários de inflações galopantes, que esqueciam aos servidores o reajuste do poder de compra de seus vencimentos, o que, com a ausência de planos de carreira, gerava graves distorções de ganhos entre empregos públicos e privados. Essa complacência da política faz com que até hoje não haja regulamentação do direito de greve no Estado. Regulamentação necessária, pois imaginem bem todos os médicos e enfermeiros e anestesistas ingressando em greve geral e indeterminada no SUS? Mas isso daria outro texto de opinião.

No mais, esse episódio baiano bem poderia inspirar Fernando de Morais ao Tropa de Elite 3, mas, desta vez, saindo do realismo e inaugurando-o no surrealismo de cinema.

Nadjara Lima Régis é advogada e Procuradora Geral do Município de Vitória da Conquista