Os quilombolas que estão desafiando mineradora britânica acusada de soterrar rio na Chapada Diamantina
Uma cratera cinza em um mar de montanhas verdes.
Esse é um cenário de Piatã, cidade da Chapada Diamantina, centro do Estado da Bahia, um dos pontos turísticos mais exuberantes do país e palco de um conflito que há alguns anos opõe moradores de duas comunidades quilombolas centenários – Bocaina e Mocó – e uma empresa britânica de mineração chamada Brazil Iron.
De um lado, pequenos agricultores no entorno da mina reclamam de supostos danos ambientais causados pela exploração do minério de ferro, como poluição e soterramento das nascentes de um rio, além de prejuízos à saúde causados pela poeira lançada no ar por explosões.
Do outro, a companhia britânica nega qualquer irregularidade ou dano ambiental e diz fazer uma “mineração verde”, movida a energia renovável e com uso menor de carbono, um dos gases do efeito estufa que causa o aquecimento global.
Também afirma ter encontrado uma reserva de ferro “importante para o planeta”, recurso em parte a ser utilizado na construção de trens e carros elétricos.
A empresa está sendo processada pela Defensoria Pública da União (DPU), que defende as famílias de pequenos agricultores da região, e é também alvo de uma investigação do Ministério Público da Bahia.
Nesta quarta-feira (24/4), o embate tem um novo capítulo, dessa vez internacional.
As cerca de 80 famílias da região de Piatã apresentaram em um tribunal de Londres uma queixa formal sobre supostos impactos ambientais e danos à saúde mental e física relacionados à operação da mina, que durou três anos – eles querem que a Justiça do país obrigue a empresa a pagar indenizações a cada uma das famílias.
No ano passado, as comunidades informaram à Justiça britânica, por meio de um grupo de advogados, que tinham a intenção de processar a Brazil Iron – abrindo um prazo para que as partes resolvessem a questão extrajudicialmente, o que não aconteceu.
Por meio dos mesmos dos advogados, os moradores conseguiram uma liminar: a corte britânica proibiu a companhia de entrar diretamente em contato com os quilombolas, porque as famílias diziam se sentir intimidadas por funcionários da empresa por meio de visitas e cartas.
Na época, as operações da empresa já estavam paralisadas. Em abril de 2022, após três anos de atividades e denúncias de irregularidades dos locais, o governo da Bahia – do então governador Rui Costa (PT), hoje ministro da Casa Civil – interditou a mina da Brazil Iron por tempo indeterminado.
Mas a Brazil Iron, bancada com dinheiro de acionistas, incluindo ingleses, não desistiu dos seus planos: planeja conseguir retomar não só os trabalhos em Piatã como também expandir a mineração para outros 30 pontos da Chapada Diamantina – em cidades como Abaíra e Jussiape -, segundo requerimentos formais de licença de pesquisa para mineração obtidos pela reportagem.
Já a prefeitura de Piatã – município com cerca de 20 mil habitantes – celebra os ganhos financeiros da chegada dos britânicos: surgiram vagas de emprego em uma região com escassez de oportunidades, a economia melhorou com a abertura de restaurantes e hoteis, além da cidade ter passado a receber royalties pela exploração mineral em seu território, o que proporcionou obras públicas.
Em março, a reportagem da BBC News Brasil foi até Piatã para entender esse conflito. Na cidade conhecida por sua centenária produção de café e cachaça, o cenário é de divisão: parte da população, principalmente na zona rural, tem resistido à mineração, enquanto outra parcela apoia o setor.
‘Tudo foi por água abaixo’
“Sou da sexta geração de quilombolas da Bocaina”, diz Catarina Oliveira da Silva, de 52 anos, que se tornou líder de uma associação que vem desafiando a empresa desde o início das operações da mina, em 2019.
“A gente tem uma história de uns 200 anos. Uma história triste que vem da escravidão, meu tataravô foi escravo. Será que nunca teremos paz?”, questiona a agricultora, que abandonou sua antiga casa para viver em um ponto mais distante da mina.
Catarina conta que, com a chuva forte, os rejeitos da mineração começaram a descer a montanha, soterrando as nascentes do rio Bebedouro, que corta as comunidades, um processo conhecido como “assoreamento”.
Mas também um sonho de Catarina foi soterrado: ela estava investindo na construção de um pesque-pague em um pequeno lago de três metros de profundidade no terreno da família.
“A gente comprou canos, bomba, cabos de energia, e tinha perspectiva de ampliar a lavoura e fazer um meio de lazer e também de negócio. Mas tudo foi por água abaixo”, conta.
“A água trazia os rejeitos. Com isso soterrou todo esse lago, e agora está do jeito que vocês estão vendo, mais de três metros assoreado de lama de minério”, diz a camponesa, que hoje trabalha como cozinheira em uma escola municipal e complementa a renda com a produção de mel.
No ponto onde ficava o lago, o que se vê agora é capim alto e ferramentas abandonadas, como um moinho de espremer cana. Mais à frente, onde passava o rio Bebedouro, há uma clareira cercada pela vegetação de Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica, biomas que se misturam na região.
Catarina, nascida e criada naquela mata, diz que consegue perceber a presença do minério pegando a terra nas mãos. Ela cava uma amostra do leito do rio e outra do meio da floresta. “Essa aqui é a terra da mata, mais grossa, fértil, mais caroçuda. Já essa daqui é do leito do rio, resultado do assoreamento, fina, seca, com um pouco de brilho”, explica.
Para ela, a lentidão da Justiça brasileira foi um dos motivos que levaram a comunidade a processar a Brazil Iron na Inglaterra – um movimento iniciado anos atrás por vítimas da tragédia de Mariana, que processaram a Vale também no Reino Unido.
“Acho que a Justiça aqui no Brasil, não sei, não resolve muito problema dos pequenos”, diz. “Acho que a empresa não imaginava que a gente pudesse chegar a uma instância fora do Brasil. Estamos buscando ter mais força porque a pressão aqui é muito grande.”
‘Caixa d’água da Bahia’
Segundo o geógrafo Rogério Mucugê Miranda, que estudou os impactos da mineração em seu mestrado na Universidade Católica do Salvador, uma atividade que traga poluição a rios e nascentes da Chapada Diamantina pode afetar não apenas os quilombos de Piatã.
“A Chapada Diamantina é a caixa d’água da Bahia. O rio Bebedouro é um afluente do rio de Contas, que ajuda a abastecer parte do Estado, desembocando em Itacaré (sul da Bahia). O problema é que essa caixa d’água está sendo contaminada, queimada, poluída. A chapada deveria ter uma importância estratégica, porque sem água ninguém vive”, diz.
Ele critica o modelo implantado na região, vendido pela empresa como “sustentável” e “verde”.
“A sustentabilidade é somente econômica, a comunidade está sendo impactada. O que acontece aqui é a expansão da metrópole para o meio rural. Se a gente está dizendo que esse modelo é sustentável, que esse modelo vai gerar uma energia limpa, será que é limpo acabar com um rio?”, questiona.
Um estudo de 2020, produzido por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA), constatou a presença de chumbo, fósforo, manganês e zinco em amostras do rio Bebedouro, cuja água era utilizada para abastecer a população local.
Segundo a pesquisa, nas amostras havia concentrações de minérios acima do recomendado por órgãos ambientais, o que demandava monitoramento e estudos mais aprofundados sobre o impacto da mineração no solo e na água.
A empresa Brazil Iron contesta qualquer influência da mina na poluição e assoreamento das águas do rio Bebedouro. Segundo Rafael Genú, gerente de meio ambiente da companhia, um monitoramento próprio “não indicou qualquer impacto ambiental”.
“Temos programas que monitoram a água, qualidade do ar, vibração. Todos os nossos monitoramentos indicam que nós não temos nenhum tipo de interferência direta em qualquer uma dessas situações”, diz Genú, que conversou com a reportagem na entrada da mina interditada, de onde se via apenas máquinas paradas e o tráfego de caminhões.
Pó na terra
Segundo os agricultores, o minério de ferro estava no ar e na terra.
Eles contam que as constantes explosões, muitas vezes sem aviso prévio, não só causavam muitos sustos em uma população acostumada ao silêncio da zona rural, como também lançava uma poeira no ar, processo que, segundo eles, prejudicou a lavoura e também a saúde das pessoas.
“As folhas de hortaliças ficavam escuras. Às vezes, dava para ver até os brilhinhos nas folhas. A gente ficou com medo de comer, e acabou desanimando de plantar. Mesmo lavando, você não consegue tirar 100% do resíduo”, diz Edimone Almeida Silva, de 39 anos, que também mora na Bocaina e vivia essencialmente da agricultura familiar.
A camponesa, mãe solo de duas filhas adolescentes, percebeu que uma delas passou a tossir além do normal, principalmente em noites pós-explosões.
“Ela praticamente não dormia, era a noite inteira tossindo, tentando coçar a garganta, roncando. Levei no médico, e ele passou o inalador. Ela tinha de usar sempre. Depois da interdição, ela melhorou”, conta Edmone, que diz também ter sofrido alguns problemas respiratórios durante a operação da Brazil Iron.
Em nota, a empresa afirma que “nenhuma evidência” de problemas de saúde relatados pelos moradores foi apresentada. Também diz ter oferecido aos agricultores “exames independentes e tratamento médico gratuito”, mas que 26 famílias não compareceram. “Aqueles que aproveitaram a oportunidade, não apresentaram sintomas”, diz.
A poucos quilômetros da casa de Edimone, já na comunidade do Mocó, outra agricultora conta ter abandonado o pequeno canavial que sua família mantinha há décadas.
“Tinha um pó na terra, como se tivessem jogado cimento. A cana começou a morrer, não vingava, e não conseguimos mais plantar. Virou tudo capim pra gado”, diz.
Pouco antes da entrevista, a camponesa fez um pedido: não queria que seu nome nem sua imagem fossem divulgados nesta reportagem.
“Eu tenho medo, porque outras pessoas aqui são a favor da mineração. E, quando eu falo que sou contra elas aparecem aqui para me cobrar, me pressionar. É uma pressão muito grande”, diz.
Em 2020, essa pressão chegou às ruas de Piatã. Moradores dos dois quilombos fizeram um protesto contra a mineração no centro da cidade, mas a manifestação foi dispersada com bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela Polícia Militar.
Mineração verde
A empresa Brazil Iron diz trabalhar com “mineração verde” a partir de uma produção de aço conhecida como “ferro briquetado a quente”, sem a necessidade do uso de carvão, resultando em menos emissões de carbono na atmosfera. Para isso, a companhia afirma utilizar energia elétrica solar e eólica produzida em fazendas na Chapada Diamantina.
A Brazil Iron tem pelo 30 solicitações em andamento para expandir a mineração pela região, pois acredita que a reserva de ferro ali encontrada será importante para suprir a necessidade do planeta por aço.
Embora a empresa negue qualquer impacto ambiental, segundo Rafael Genú, diretor de meio ambiente, a Brazil Iron “aprendeu com alguns erros do passado”. Ele cita como exemplo o desmatamento sem autorização de uma área comprada pela empresa.
“É um projeto sustentável, que inclui as comunidades, que mantém uma mitigação (dos impactos), tem um controle e monitoramento ambiental efetivos, com resultados confiáveis e comunicação aberta. Essa é a maneira de se fazer hoje a mineração sustentável”, diz.
Inicialmente, a Brazil Iron só tinha autorização para realizar um estudo sobre o impacto ambiental e viabilidade econômica da mineração em Piatã – essa fase é chamada de “lavra experimental”. A partir daí, a empresa poderia conseguir a liberação para explorar comercialmente a reserva.
Essa lavra dava à companhia o direito de extrair e comercializar 300 mil toneladas de ferro por ano, mas o próprio site da empresa informava, em 2022, que ela estava produzindo muito mais – uma média de 120 mil toneladas por mês.
Em nota, a Brazil Iron afirmou que “esses números estão equivocados e que 120 mil toneladas se tratavam da capacidade do equipamento, não da produção real”. A empresa alega que nunca excedeu os limites, e que passava por fiscalização.
A atuação da companhia inglesa está sendo investigada pelo Ministério Público da Bahia. A BBC News Brasil pediu uma entrevista com o promotor do caso, mas ele informou que não poderia se manifestar, pois a investigação corre em segredo de Justiça.
A Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou uma ação contra a Brazil Iron por danos ambientais e prejuízos às comunidades quilombolas. O órgão pede R$ 5 milhões de indenização destinada aos moradores.
A empresa afirma que irá provar nos tribunais, do Brasil e da Inglaterra, que não causou tais impactos relatados nesta reportagem.
A Brazil Iron Ltd tem sede em Londres, e controla sua subsidiária brasileira, a Brazil Iron Mineração LTDA.
O presidente da companhia é um empresário australiano de mineração chamado Gordon Toll, dono da Atlantic Iron Ltd. O CEO é o britânico Guy Saxton, residente no Brasil.
Contatada na segunda-feira, a Agência Nacional da Mineração (ANM), órgão federal responsável pela gestão do setor no país, não respondeu aos questionamentos da BBC até a publicação desta reportagem.
Procurado no dia 19 de abril, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) também não respondeu.
Ganhos financeiros
O prefeito Marcos Paulo Santos Azevedo diz que as receitas da mineração ajudaram a prefeitura a entregar obras públicas
Enquanto famílias da zona rural se mobilizam contra a mineração, a Prefeitura de Piatã celebra os ganhos econômicos gerados pelo setor. A cidade passou a receber um royalty chamado Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem).
Entre 2019 e 2022, a cidade recebeu R$ 28,2 milhões de Cfem, de acordo com a Companhia Baiana de Pesquisa Mineral, valor que praticamente foi zerado após a interdição.
Como comparação, no mesmo período, Piatã arrecadou R$ 78,8 milhões do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), principal repasse de verbas da União às cidades.
Segundo o prefeito Marcos Paulo Santos Azevedo (PSD), durante a operação da mina, o dinheiro do Cefem ajudou a prefeitura a construir escolas públicas, um posto de saúde, ciclovia, quadras esportivas e parte de um estádio municipal.
“Como prefeito, não tenho como negar a importância do Cfem, porque eu não conseguiria fazer tudo isso só com o FPM”, diz.
O prefeito diz que não tem poder para interferir no licenciamento ou em fiscalizar o impacto ambiental da mineração. Isso depende de órgãos ambientais dos governos estadual e federal. “Se a mina foi interditada, algum motivo deu para isso”, pondera.
Azevedo conta ter se assustado ao ouvir uma das promessas da Brazil Iron para Piatã: a criação de 15 mil empregos caso ela consiga implantar seu projeto de crescimento.
“Não posso pensar só no lado financeiro. Qual o impacto disso para minha cidade? Piatã consegue absorver todas essas pessoas? Estive lá na mineração, e eles me falaram que vão criar 15 mil empregos. Espera aí, calma. Eu tenho Piatã de 20 mil habitantes, vou botar mais 15 mil pessoas onde aqui? Então, isso realmente me assusta”, diz.
‘Perto da família’
Erivelton Sousa Silva é um dos 400 funcionários da Brazil Iron
Um dos 400 empregos que a Brazil Iron diz já ter criado em Piatã pertence a Erivelton Sousa Silva, de 28 anos, morador da Bocaina e presidente de outra associação de agricultores que se posiciona a favor da mineradora britânica, ao contrário de seus vizinhos.
“Quando terminei os estudos aqui, não tinha fonte de renda nem nada. Na comunidade, a maioria dos jovens viaja para São Paulo para procurar emprego. Morei lá por dois anos. Não aguentei e vim embora”, conta o funcionário, que começou na mineração em 2019 como porteiro e hoje atua como motorista de caminhão e operador de máquinas pesadas.
Para ele, um dos principais benefícios da mineração, “além da carteira assinada e as férias remuneradas, é ter a oportunidade de morar perto da família”.
“Meus pais sentiram muito minha falta. Então, algo que o dinheiro não pode comprar é a oportunidade de estar perto da mãe e do pai da gente”, diz Erivelton, que diz receber R$ 4 mil de salário, renda que ajuda na casa e na criação de alguns animais nos fundos do terreno da família.
Para ele, a desconfiança dos quilombolas é resultado do histórico da empresa britânica na região. “Hoje a comunidade mostra uma certa resistência. As pessoas ficam com um pé atrás: será que dessa vez eles estão falando a verdade?”
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