Em um Artigo com uma narrativa, que retrata e expõem aspectos históricos da vida do empresário, do amigo, e de personagens que costumeiramente conviviam com o homenageado, que o ex- delegado Valdir Barbosa, aponta contexto históricos de exaltação e saudades do amigo e de recordação do passado, em que ele mesmo, também se coloca como personagem.
CIPRESTES
(PARA RONALDO PINTO)
Quando o filho de Seu Zoroastro descia, logo cedo, em rápidas passadas, a Rua Coronel Gugé, para abrir a loja herdada do pai e fundada há mais de oitenta anos, antes que acessasse o famoso Beco da Tesoura era possível ver bigode farto que escondia um sorriso enigmático, próprio dele mesmo. Em verdade, durante muito tempo, a Casa Cipreste foi local onde se comprava eletrodomésticos e realizava conserto de ferros elétricos, época na qual, não eram praticamente descartáveis tais utensílios.
Sua rotina diária, de segunda a sexta e nos sábados, pela manhã, consistia na atenção aos clientes, muitos deles fidelíssimos, aos quais, durante décadas serviu com distinta educação, traço da sua polidez admirável. Às vezes, nos hiatos da atividade laboral era possível vê-lo sentado num banco, costumeiramente postado quase em frente ao seu estabelecimento, em longas conversas triviais, com velhos amigos frequentadores do lugar.
Os assuntos, via de regra caminhavam na esteira das novidades do dia a dia interiorano, da política local, estadual e nacional, do esporte preferido pelos brasileiros, o futebol, não sendo exceção tal favoritismo nas plagas conquistenses, afora, em tempos das vitórias memoráveis dos irmãos Nogueira, Minotauro e Minotouro, ícones mundiais do MMA.
Na época de Naldo e Piolho, dias em que o time da cidade brilhou nos gramados de toda Bahia, a euforia era contagiante na cidade serrana, portanto, a confraria do Beco da Tesoura também embarcava na energia do entusiasmo, frente as vitórias do Conquista, mas, se diga de passagem, nem mesmo no apogeu dos filhos de Ninha Brito, os gêmeos Zó e Kel, sobrinhos da figura de quem trato nestas saudosas linhas, futebolistas que brilharam nas canchas, dentro e fora do estado, as manifestações efusivas daquele homem extrapolaram limites.
Sim, porque personalidade de educação esmerada, fino trato, voz firme, mas comedida, jamais, desde quando pude conhecê-lo, no crepúsculo dos anos setenta consegui testemunhar qualquer postura desregrada, atitude deselegante, desrespeitosa, agressiva, ou destemperada, por parte dele, mesmo nos momentos de lazer e festa, nas horas de folga, mormente, às memoráveis tardes de sábado, ou manhãs de domingo daqueles tempos idos.
Arrisco dizer, desafiando a memória desse quase septuagenário, tê-lo conhecido através do menestrel Chico Viola, Iris Silveira, rei da voz das alterosas baianas. Posso também ter sido apresentado a ele por Chico Preto, Chico das Joias, personagem a quem vi muitas vezes, na casa Cipreste, numa daquelas oportunidades que passei por ali, ainda muito jovem.
Tenha sido levado conhecê-lo diante de qualquer um dos dois “chicos”, ou outra qualquer pessoa a quem olvido, a lembrança destes citados, me remete a toda sensibilidade escondida naquela aparência circunspecta de Ronaldo Pinto, circunstancia emergindo nos acordes da gaita que trazia escondida, entre os bolsos das calças largas que costumeiramente vestia.
Naquele tempo, não mais que de repente, enquanto a voz esplendida de Chico Viola reverberava no espaço onde privilegiados se encontravam para ouvi-lo cantar, muitas vezes percebi, entre os presentes, Chico Preto aos prantos, na força da sublimação daqueles momentos, quando a ocasião ganhava contornos mágicos, pelos tons melódicos do instrumento pequenino, se agigantando nos sopros e inspirações – de ar e alma – brotados da gaita tocada por Ronaldo.
Ontem, pelas redes sociais e notícias vindas através de amigos comuns soube da passagem deste ente fraternal. Viajei nas reminiscências, até o Beco da Tesoura, ao restaurante de Dalva, ao Casarão, de Jaime, ao antigo Pisa na Fulô, de Wilson – pai de Glauber, meu afilhado -, ao Taquara, à Pousada da Conquista, ao Varandá, ao velho Aerobar, cantos, onde os encantos de nosso convívio estão presentes até hoje no meu juízo, sem desprezo de outros tantos não ditos e fui dominado pela força avassaladora da saudade.
Preso em Salvador, não pude levá-lo a última morada, nestes tempos de exceção, por conta da pandemia creio imponderável fosse possível fazê-lo, mesmo aí estivesse, porém, nada me impediu e impedirá de continuar a vê-lo sorrindo de forma leve e breve. Consigo ouvir nitidamente os acordes do instrumento que tocava com doçura, na certeza de que aqueles “franciscos”, outras e outros que lhe amam e o precederam no além, estão pavimentando a estrada etérea que agora lhe serve de esteira.
Amigo. Cipreste, cujo significado pode remeter a luto, tristeza habita em nós, neste momento, na dor da ausência física, porém, confiando que a vida transcende, tenho por certo, aquelas árvores que margeiam caminhos iluminados, onde agora cuidas de andar estão viçosas e verdejantes lhe servindo de baliza e companhia. Cipreste sempre foi e será o seu destino.
Salvador, 18/19 de abril de 2020
Artigo: Valdir Barbosa, publicado na pagina do Facebook (19/04/2020.
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