VITÓRIA DA CONQUISTA (BA) – “Você está confortável?” Pergunta a entrevistadora forense para a garota de cinco anos. Ela pede para tirar as sandálias apertadas. Acomoda-se em uma das duas poltronas da sala de depoimento especial do Complexo de Escuta Protegida, inaugurado em agosto em Vitória da Conquista (BA).
São 10h30 quando Carolina (nome fictício) está a postos para ser ouvida como vítima de estupro por parte do padrasto, na primeira oitiva especial realizada no complexo em 7 de outubro. A pintura em tons de rosa e os quadrinhos na parede remetem a uma sala de terapia e não à dureza de uma audiência judicial para colher provas de um crime sexual.
O espaço é parte do Centro Integrado dos Direitos da Criança e do Adolescente do município pioneiro na implantação da Lei 13.431, de 2017, que estabelece protocolos para evitar a revitimização de testemunhas e vítimas de violência.
Enquanto na sala ao lado a juíza inicia a audiência acompanhada do advogado do réu e do representante do Ministério Público, a depoente é poupada de leitura de peças, questões processuais e perguntas delicadas feitas sem o devido cuidado.
Carolina brinca com massa de modelar e cria vínculo com a psicóloga destacada para colher o relato de como o ex-companheiro da mãe a teria molestado.
“Por que você veio aqui hoje?”, indaga a profissional, quando 40 minutos depois a imagem das duas, captada por uma câmera no teto, passa a ocupar a tela da sala de audiência.
É iniciado o depoimento conforme a lei, gravado em áudio e vídeo, transmitido ao vivo para os operadores da Justiça presentes.
“Por que ele mexeu comigo”, responde a menina, em referência homem de 43 anos, preso desde maio, após denúncia por estupro de vulnerável e violência doméstica.
Ao presenciar uma agressão, a enteada teve coragem de verbalizar. “Se você não parar de bater na minha mãe, vou contar aquele negócio.”
No registro da ocorrência, a mãe e a avó declararam relatos da criança: o padrasto tocava suas partes íntimas, passava leite condensado no pênis e pedia que ela fizesse sexo oral.
“Ele passava a mão e pegava o negócio dele para eu chupar”, repete a menina em juízo. Cochicha detalhes, como o uso de uma marca de leite condensado. “É coisa de bolo”, explica. “Ele colocava na binga”, sussurra, usando nome popular para o órgão sexual masculino.
A garota responde ainda a perguntas da promotoria e da defesa repassadas pela juíza, por telefone, à entrevistadora forense. “Você lembra se essa situação com o leite condensado aconteceu mais de uma vez?” A resposta é categórica: “Mais de uma vez”.
Carolina conta que o agressor, com o qual ficava sozinha quando a mãe trabalhava, tirava o short, a blusa e a cueca. “Ele abaixava minha roupa. Depois amanhecia. Aí acabou a história.” A frase é a deixa para o fim do depoimento de 25 minutos.
“Com a oitiva especial em vídeo anexada aos autos evita-se a repetição desse tipo de relato de quatro a cinco vezes, pelo menos, um fator revitimizante”, afirma a juíza Julianne Nogueira, da Vara de Violência Doméstica e Familiar.
Os demais órgãos e serviços de assistência também acessam o depoimento gravado, poupando a vítima de reviver a violência narrada. “Este fluxo único é uma mudança de paradigma a partir da integração da rede de proteção às vítimas com o sistema de Justiça”, avalia a juíza.
Aos 16 anos, Janaína (nome fictício) se recorda do quão difícil foi repetir em diversas instâncias os detalhes dos abusos que sofrera por parte do avô paterno dos 6 aos 13. “Era sempre à noite. Acordava assustada com ele no meu quarto. Não sabia que aquilo era sexo. Nunca teve penetração, mas ele tocava minhas partes íntimas.”
Há dois anos, com o suporte da mãe, denunciou o fato ao Conselho Tutelar.
“Meu avô foi a pessoa que mais cuidou de mim. É difícil denunciar quem você ama.” – Janaína, 16 vítima de abuso sexual
Um dos momentos mais constrangedores para a garota virgem foi o exame de corpo de delito. “Fiz no necrotério com um médico idoso como meu avô. Ainda bem que a enfermeira entrou comigo”, relata. “Fiquei assustada com as perguntas sobre sexo. É uma violência passar por esse tipo de interrogatório.”
O processo foi arquivado por falta de provas. Era a palavra da adolescente contra a do avô, um aposentado de 62 anos. “Ele cometeu um crime e teria de pagar pelo mal que me fez”, diz ela.
A conversa com a Folha é em uma das salas do centro integrado inaugurado em 2015 no município baiano, o primeiro do Brasil a reunir, num só lugar, toda a rede de proteção, como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente.
As instalações de uma antiga escola abrigam hoje 14 órgãos ligados a assistência social e aos sistemas de Justiça e Segurança Pública. A vítima e sua família vão encontrar ali o Conselho Tutelar, a Vara da Infância, Promotoria e Defensoria pública e uma unidade da Polícia Civil.
A delegada Rosilene Correia, titular da Delegacia da Criança e do Adolescente, ocupa um ambiente cercado de brinquedos. “Adorei a ideia de atuar em um espaço que não tem cara de delegacia.”
A delegada é entusiasta da mudança de protocolo na tomada de depoimento de crianças e adolescentes. “A escuta humanizada é uma forma de a vítima não precisar repetir ainda traumatizada a mesma história na delegacia, no IML, para o promotor e diante do juiz.”
Nos primeiros oito meses deste ano, a delegada acompanhou a via-crúcis de quatro meninas para realização de aborto legal, todas grávidas após estupro intrafamiliar.
Uma quinta vítima, violentada pelo avô, só chegou à rede de proteção aos seis meses de gestação. Foi acolhida até o parto e o bebê encaminhado para adoção.
“Na zona rural ainda existe uma cultura feudal, de dominação do homem que se sente o dono da mulher e das filhas e acha que pode fazer o que quiser com elas”, constata a conselheira tutelar Poliane Santana.
Tatiane dos Santos da Silva, 21, vendedora e jogadora de futebol do time local, bateu às portas do Conselho Tutelar Rural em maio de 2017, quando fugiu do jugo paterno no povoado de Inhobim.
“Ela chegou com várias lesões no corpo, uma cartela de anticoncepcional e provas de que vivia como mulher do pai desde os sete anos”, relata Joyce Fonseca, conselheira que acompanhou a adolescente nos serviços de acolhimento do município.
Após cinco anos, Tatiane começa a viver com as próprias pernas. É atacante do time de futebol local, o Vitória da Conquista, acaba de concluir o ensino médio e sonha em ganhar fama nos campos e ser advogada para ajudar outras vítimas de violência sexual.
“Usei o esporte a meu favor. Cada chute que eu dava na bola, menor era a dor eu sentia. Foi um jeito de lidar com essa mágoa, esse sentimento ruim”, diz ela.
A pandemia fez aumentar os números de agressões e abusos na região. “O isolamento social resultou em mais casos de violência doméstica e sexual contra mulheres e crianças”, constata Poliane. Em setembro, foram registrados no município cinco casos de estupro de vulneráveis.
Vitória da Conquista também é cortada pela BR-116, rodovia que concentra o maior número de pontos críticos para exploração sexual de crianças e adolescentes no país.
“Dos 27 pontos críticos mapeados na BR-116 na Bahia, 9 deles ficam na região de Vitória da Conquista”, afirma Francisco Dadalt, coordenador do Mapear, levantamento realizado há 18 anos pela Polícia Rodoviária Federal e parceiros.
No biênio 2019/2020, o estudo mapeou 470 pontos de maior atenção em todo o Brasil, 78 deles no Estado da Bahia.
“O mapeamento jogou luz e mudou a dinâmica da exploração sexual, que já não é mais tão visível nas rodovias federais, levando o problema para rodovias estaduais e para dentro das cidades”, afirma Dadalt.
Entroncamento entre Minas e Bahia e conexão entre as regiões Nordeste e Sudeste, Vitória da Conquista recebe fluxo grande de caminhoneiros e turismo de negócio.
“Hoje o aliciamento de crianças e adolescentes são em casas, bares, em ambientes fechados. Não tanto na pista ou em postos de gasolina como no passado”, diz a delegada, sobre os novos desafios do combate à exploração sexual na região.
Neste cenário, um complexo integrado para garantia de direitos é aparato importante para estimular denúncias dos crimes e também contra a impunidade e para efetiva responsabilização dos agressores.
“Implementar a lei da escuta protegida e ter um centro integrado de atendimento às vítimas de violência não é somente criar um espaço físico. É construir nova cultura”, afirma Michel Farias, secretário municipal de Desenvolvimento Social.
“É um processo difícil de diálogo entre diversas instituições, o que pressupõe a ruptura de um modelo de atendimento. Para que seja de fato integrado, é preciso haver sinergia dos agentes das diversas políticas públicas envolvidas, de educação, saúde, assistência, segurança.”
Uma orquestração que fez o complexo de Vitória da Conquista virar referência nacional, com investimento de R$ 1 milhão em tecnologia e estrutura.
Farias, um advogado de 31 anos e ativista na área de direitos da infância, passou a ciceronear comitivas de vários estados e autoridades federais que têm ido conhecer a experiência pioneira no município baiano.
ONG atende meninas em trechos críticos para prostituição da BR-116
Adolescente imita videoclipe de k-pop na Casa Rosa de Cândido Sales, na Bahia Carolaine Santos de Jesus, 21, que foi acolhida no projeto quando era adolescente Centro mantido pela ONG Meninadança oferece acolhimento e aulas de dança e artesanato para meninas em pontos críticos de exploração sexual Adolescentes fazem aula de dança no projeto em Cândido Sales, na beira da BR-116 O motorista Adnaldo Prado Amaral, 47, que dirige caminhão com mensagem contra exploração sexual nas estradas Sala de atendimento na casa mantida pela associação Meninadança, na Bahia
Crianças e adolescentes participam de ateliê de artesanato na instituição
Um caminho desbravado a partir de tratativas do Executivo local com o Tribunal de Justiça da Bahia e o Ministério Público Estadual.
“Vitória da Conquista é a primeira cidade do país a realmente pactuar o atendimento integrado, que vai além da concentração física dos serviços”, afirma Itamar Gonçalves, gerente de Advocacy da Childhood Brasil.
A entidade firmou acordo de cooperação técnica com a prefeitura para capacitação de toda a rede municipal de proteção a crianças e adolescentes.
Segundo o especialista, o município fez bem mais do que instalar uma das mil salas de escuta protegida já em funcionamento em estruturas do judiciário em todo o país.
“Ali, todo o fluxo de atendimento foi integrado, o que impacta na qualidade da oferta dos serviços e na responsabilização de agressores, além de promover a dignidade da criança e de adolescentes que tiveram seus direitos violados.”
DENUNCIE
Qualquer pessoa pode denunciar casos de abuso e exploração sexual pelo Disque 100 (basta teclar 100 de qualquer telefone em qualquer lugar do país) ou pelo Ligue 180 (basta digitar 180).
O atendimento é gratuito e funciona 24 horas. | Folha de S. Paulo, por Eliane Trindade e Mathilde Missioneiro
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