O depoimento do ex-prefeito José Fernandes Pedral Sampaio à Comissão da Verdade de Vitória da Conquista representa muito mais que um relato individual sobre os temores de 1964. É um testemunho vivo de como a democracia brasileira foi brutalmente interrompida, revelando as engrenagens perversas de um sistema que transformou gestores públicos em inimigos do Estado.
O Golpe que Chegou ao Interior
Pedral Sampaio nos oferece uma perspectiva única: a de um prefeito que vivia o cotidiano administrativo quando o golpe militar varreu o país. Sua narrativa desmistifica a ideia de que a repressão se limitou às grandes capitais. Em Vitória da Conquista, pequena cidade do interior baiano, as garras do autoritarismo se fizeram sentir com a mesma crueldade.
O relato sobre sua prisão no dia 6 de maio de 1964 – quando simplesmente saiu de casa para trabalhar e foi detido no quartel – ilustra a arbitrariedade que se tornou regra. Não houve acusação formal, devido processo ou qualquer respeito aos direitos constitucionais. Bastava ser identificado como “comunista” ou “subversivo” para ter a vida destruída.
A Violência do Estado Contra a Democracia Local
Particularmente revelador é o episódio envolvendo a morte de Périx Guzmão, descrito como “suicídio” pelas autoridades militares. Pedral Sampaio, com a lucidez de quem conhecia o homem, questiona essa versão oficial. Sua sugestão para que a Comissão da Verdade investigue o caso não é apenas um pedido de justiça histórica, mas um alerta sobre quantas verdades foram enterradas sob o manto do “suicídio” durante a ditadura.
O relato sobre as condições carcerárias – a alimentação negada, o banho gelado na madrugada, a incomunicabilidade – revela como o Estado brasileiro tratou seus próprios cidadãos. Não eram criminosos, eram gestores públicos legitimamente eleitos, transformados em prisioneiros políticos da noite para o dia.
O Coronelismo Político e as Vinganças Pessoais
Um dos aspectos mais perturbadores do depoimento é a revelação de como rivalidades políticas locais foram instrumentalizadas pela repressão. A menção a Lomanto Júnior, então governador da Bahia, que teria articulado a suspensão dos direitos políticos de Pedral por pura vingança eleitoral, expõe como o golpe militar serviu de ferramenta para acertos de contas políticas.
Antônio Carlos Magalhães, futuro cacique da política baiana, aparece no relato negando participação na perseguição e culpando Lomanto. Essa dança das cadeiras da responsabilidade histórica revela como muitos que depois se beneficiaram do regime militar preferiram omitir seu papel nos anos de chumbo.
A Resistência Possível
Apesar do terror instaurado, o depoimento revela gestos de resistência e solidariedade. A decisão de Pedral de não abandonar a prefeitura durante as ameaças, a volta de Vivaldo Barcelar armado para defendê-lo, os companheiros que se revezavam em vigílias noturnas – tudo isso mostra que mesmo nos momentos mais sombrios, a dignidade humana encontra formas de se manifestar.
O exílio no Rio de Janeiro, vivido em uma quitinete de Copacabana, representa o drama de milhares de brasileiros que tiveram que abandonar suas cidades, suas vidas, seus projetos. Pedral chegou a localizar embaixadas para eventual pedido de asilo – um prefeito eleito democraticamente reduzido à condição de refugiado político em seu próprio país.
A Importância das Comissões da Verdade
Este depoimento reforça a importância fundamental das Comissões da Verdade, especialmente as locais. Enquanto a História oficial muitas vezes se concentra nos grandes centros e nos nomes mais conhecidos, é nos relatos como este que encontramos a verdadeira dimensão do que foi a ditadura militar brasileira.
Vitória da Conquista, ao pioneiramente instalar sua Comissão da Verdade, antes mesmo da estadual, demonstrou maturidade política e compromisso com a memória histórica. O depoimento de Pedral Sampaio não é apenas registro do passado – é um alerta para o presente e uma lição para o futuro.
O Dever da Memória
Em tempos de negacionismo histórico e relativização dos crimes da ditadura, depoimentos como este se tornam ainda mais preciosos. Eles nos lembram que a democracia não é um bem dado, mas uma conquista frágil que exige vigilância permanente.
José Pedral Sampaio, ao aceitar que seu depoimento fosse registrado e utilizado para pesquisas, prestou um serviço inestimável à sociedade brasileira. Sua coragem em falar, décadas depois, sobre traumas que marcaram sua vida e sua família, nos ensina que o silêncio não é opção quando se trata de defender a verdade histórica.
A Comissão da Verdade de Vitória da Conquista, ao colher este testemunho, cumpriu papel fundamental na construção de uma memória democrática que não se deve calar. Que outros depoimentos como este sejam preservados, para que as futuras gerações compreendam o preço da liberdade e a importância de defendê-la sempre. Conteúdo extraído do blog https://politicaeresenha.com.br/
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