Número recorde de candidatos a vereador, migração para partidos maiores e, pela primeira vez, mais negros do que brancos.
O xadrez político da disputa a um cadeira nas Câmaras Municipais pelo país ficou ainda mais embaralhado na eleição deste ano, já marcada pelas incertezas da pandemia da Covid-19.
O pleito de 2020, que acontecerá no dia 15 de novembro, inaugura a proporcionalidade na distribuição de recursos a candidatos negros e brancos, conforme decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), além do veto a coligações de partidos na disputa do cargo de vereador.
A mudança em relação às coligações foi fixada por emenda constitucional de 2017, pela qual a união de partidos em chapas vale só para os cargos majoritários —prefeito, senador, governador e presidente da República.
Com isso, os candidatos a vereador somente podem participar em chapa única dentro do partido —sistema que pode enfraquecer partidos menores, que antes pegavam carona na estrutura de campanha dos maiores.
Com isso, legendas como DEM, PSD, PP, MDB e Republicanos estão entre as que mais ganharam vereadores, que mudaram de partido na janela partidária de abril. Já os nanicos, como PRTB, PMN, PTC, DC e PMB, sofreram as maiores perdas. O último registrou uma queda de 81%, saindo dos 218 vereadores eleitos em 2016 para 39.
Em relação à mudança de perfil em relação à cor dos candidatos, especialistas apontam para o impacto de ações de combate ao racismo no número de pessoas que se reconhecem como pretas e pardas.
Em 2016, o Brasil elegeu 57.933 vereadores. Grande parte deles dividiu o plenário de suas cidades com outros 8 parlamentares: 58% dos municípios podem eleger 9 vereadores para a Câmara. Assim determina a Constuição Federal às cidades com até 15 mil habitantes.
O número aumenta paulatinamente até chegar aos 55 vereadores de São Paulo, única cidade brasileira com mais de 8 milhões de moradores.
Os parlamentares contam com uma estrutura em seus gabinetes, com verba e assessores. Em 2020, a verba de cada vereador em São Paulo foi de R$ 310.612,56, uma média mensal de R$ 25.884,38, segundo site da Câmara Municipal. O montante é “destinado ao custeio de serviços gráficos, correios, assinaturas de jornais, deslocamentos por toda a cidade e materiais de escritório, entre outras despesas”.
A Constituição define que “o total da despesa com a remuneração dos vereadores não poderá ultrapassar o montante de cinco por cento da receita do Município”.
Além do papel de criar e aprovar leis que afetam a vida dos moradores das cidades, os vereadores têm um papel estratégico para fiscalizar a ação dos prefeitos.
Quais são as principais atribuições dos vereadores?
Em todos os entes federativos —União, estados e municípios—, uma das atribuições do Poder Legislativo é criar as leis que serão posteriormente colocadas em prática pelo Poder Executivo. Nas cidades, esse poder é representado pelas Câmaras dos Vereadores.
Eles podem apresentar projetos de lei, emendar textos apresentados por colegas ou pelo Executivo e acompanhar a implementação desses projetos.
Apesar do paralelo traçado com o Congresso Nacional e as Assembleias estaduais, os vereadores legislam apenas sobre assuntos relacionados ao município, que foram determinados pela Constituição Federal de 1988.
Em seu artigo 30, a carta define que organizar serviços públicos de interesse local, “incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”, é competência dos municípios, assim como manter programas de educação infantil e de ensino fundamental.
Além de legislar, os vereadores devem fiscalizar a atuação dos prefeitos e editar seus próprios regimentos. Isso implica decidir a função do presidente da Casa, se haverá comissões, como elas vão funcionar, por quem serão compostas e como seus membros serão eleitos.
Qual é o papel do vereador na aprovação de uma lei?
O processo de aprovação de uma lei está descrito no regimento interno da Câmara e na Lei Orgânica Municipal, apelidada de “Constituição do município”. O documento é criado quando uma nova cidade é fundada.
A LOM de São Paulo, por exemplo, determina que o Legislativo pode elaborar emendas à Lei Orgânica, leis, decretos legislativos e resoluções.
Assim como fazer emendas à Constituição Federal, alterar a LOM é trabalhoso. Em São Paulo isso ocorre por meio da proposta de pelo menos um terço da Câmara Municipal, do prefeito ou de 5% dos eleitores da cidade. Uma vez no plenário, deve ser aprovada por dois terços dos vereadores em dois turnos com diferença de 48 horas.
Já os projetos de lei tramitam de outra forma. Se relacionados a questões tributárias, criação de cargos e concessões de serviços públicos, é necessária aprovação da maioria absoluta dos membros da Câmara. Já questões relacionadas a zoneamento urbano, Plano Diretor e zoneamento dependem de três quintos.
Além das regras e questões técnicas, os vereadores, assim como deputados e senadores, precisam se articular para aprovar projetos de interesse de suas bases. O âmbito municipal, porém, têm algumas peculiaridades.
Com 513 deputados federais e 81 senadores, a população brasileira tem 594 representantes no Legislativo federal.
A diferença em relação ao número de vereadores nas Câmaras influencia a estratégia de negociação dos políticos. “Quando eu olho para mais de 80% das cidades brasileiras, eu estou falando que a relação do prefeito com os vereadores é de um para 9 ou 11”, afirma o doutorando em ciência política na Unicamp Bruno Souza.
A consequência mais imediata dessa relação é o enfraquecimento dos partidos, que com alguma dificuldade conseguem mais de dois vereadores nesses municípios. Diferentemente de São Paulo, onde as siglas maiores conseguem formar bancadas em uma Câmara que comporta 55 parlamentares.
“A lógica de construção do consenso se dá muito mais em um caráter face a face. O prefeito pode muito bem sentar ali na sua mesa, reunir-se com os 9 vereadores, no mesmo espaço —mesmo aqueles que são da oposição— e dialogar de uma maneira muito mais direta do que a negociação feita no Congresso Nacional”, explica Souza.
Quais ferramentas o vereador tem para fiscalizar o Executivo?
A ideia de fiscalização do Executivo pelo Legislativo é ampla e pode ser exercida de muitas maneiras.
A derrubada de vetos do prefeito, por exemplo, é uma das procedimentos dos quais os vereadores podem lançar mão. Segundo o regimento da Câmara Municipal de São Paulo, após eventual veto pelo prefeito de um projeto aprovado pelos vereadores, o Legislativo da cidade tem até 30 dias para deliberar sobre o assunto.
Nesse período, o projeto deve passar por comissões pertinentes (Comissão de Constituição e Justiça, por exemplo, se o prefeito alegar inconstitucionalidade). Uma vez no Plenário da Câmara, derrubar a decisão do Executivo requer o voto da maioria absoluta dos vereadores.
Outra maneira de fiscalizar o trabalho do prefeito é com os chamados “pedidos de providência”, pelos quais os vereadores sugerem “aos poderes competentes medidas de interesse público”, segundo regulamento da Câmara paulistana.
Se chega ao gabinete do vereador a demanda por mais iluminação em uma rua, por exemplo, ele pode acionar o Executivo para cobrar que o problema seja resolvido.
A professora de direito municipal na Universidade de Passo Fundo Janaína Rigo Santin explica que, em respeito à independência entre os Poderes, as indicações não são imperativas. Ela pondera o uso exacerbado dessa ferramenta.
“Às vezes é mais efetivo você legislar para possibilitar que os órgãos de controle, como o Ministério Público, por exemplo, sejam mais atuantes e melhorem o serviço público”, afirma Santin.
Bruno Souza explica que a abundância de indicações pelo Legislativo pode ter raízes históricas.
As Câmaras Municipais são as instituições políticas mais antigas do Brasil e, por séculos, fizeram a função de administração pública das cidades, que não tinham a figura do prefeito —institucionalizada a partir de 1930.
“Quem, portanto, oferecia os serviços, controlava os poucos recursos que se tinha, organizava a zeladoria do município, cuidava da cidade em si, eram os vereadores a partir da Câmara Municipal”, explica Souza. “A Câmara foi uma espécie de órgão executivo, legislativo e, em certa medida, até judiciário e policial durante muitos anos no Brasil.”
Medida mais drástica entre as possíveis, o impeachment do prefeito também passa pelo Legislativo em alguns casos. O decreto-lei 201, de 1967, tipifica o processo, embora os municípios também o definam em suas respectivas leis orgânicas.
Deixar de apresentar a proposta orçamentária do mandato, impedir o funcionamento da Câmara e descumprir o orçamento previsto são exemplos de infrações político-administrativas julgadas pelo Legislativo municipal. A denúncia, que pode ser feita por um parlamentar ou eleitor da cidade, depende de votação favorável da maioria dos vereadores presentes na sessão.
Se aprovada, ela passa por uma comissão, que indicará o seu arquivamento ou prosseguimento. Caso julgue procedente, ela vai novamente a plenário, onde precisa de dois terços dos votos da Câmara para a cassação do mandato do prefeito.
Como o vereador impacta as leis orçamentárias?
Cumprindo uma função atípica do Poder Executivo, o prefeito legisla ao propor o Plano Plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais. Essas atribuições estão tipificadas no artigo 165 da Constituição Federal.
As leis propostas pelo Executivo são o PPA (Plano Plurianual), que tem prazo de quatro anos e guia todo o mandato do prefeito, a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), que estabelece as previsões de gastos com servidores e políticas do município, e a LOA (Lei Orçamentária Anual), que traça os planos anuais do governo.
Nesses casos, cabe aos vereadores propor emendas ao orçamento. Essas alterações são um intrumento de construção política que modifica o texto. Assim, os vereadores podem direcionar verba à área que julgue mais prioritária ou que atenda às suas bases.
A liberdade de modificação esbarra no orçamento impositivo (verbas já carimbadas) e em limitações determinadas nas leis orgânicas, que discorrem sobre o poder que o Legislativo terá ao emendar.
“O Executivo tem a chave do cofre. Mas ele não decide sozinho como serão organizados esses recursos. Por mais que ele possa abrir o cofre, começar esse processo de discussão, apresentar uma primeira versão para o orçamento, quem legisla a respeito dele, emenda, modifica, é o Legislativo”, explica Bruno Souza. “E quem dá a palavra final é o Poder Legislativo.”
Em São Paulo, a aprovação de PPA, LDO e LOA dependem do voto favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara.
Qual é o papel do vereador ao compor comissões?
A organização das comissões, grupos temáticos formados pelos próprios vereadores, também está tipificadas nas leis orgânicas e regimentos.
O artigo 32 da LOM de São Paulo determina que “a Câmara terá comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar a sua criação”.
A lei determina também que, “tanto quanto possível”, os partidos estejam representados em todas as comissões.
As suas funções são fiscalizar os atos da administração pública, acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária, realizar audiências públicas, e, inclusive, “discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do plenário”.
Um exemplo de atividade das comissões ocorre quando o prefeito veta uma lei. Nessa situação, o veto é despachado “à Comissão de Constituição e Justiça, se as razões versarem sobre aspectos de constitucionalidade ou legalidade da lei decretada; à Comissão de Finanças e Orçamento, se as razões versarem sobre aspecto financeiro da lei decretada; à Comissão de mérito, se as razões versarem sobre aspectos de interesse público”.
Cabe, então, aos vereadores que estão nesses grupos, emitir um parecer no prazo de dez dias.
As CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) se debruçam sobre denúncias. Elas podem ser também uma forma de o Legislativo fiscalizar o prefeito, pois podem investigar uma eventual fraude ou improbidade administrativa em qualquer órgão da administração direta ou indireta. Em São Paulo estão ativas as CPIs das Concessionárias, da Evasão Fiscal e da Violência contra a mulher.
Como o vereador representa a diversidade do município?
Por ser um poder formado por um grupo de pessoas, é da natureza do Legislativo levantar debates que dificilmente seriam prioridade do Executivo. Com menos votos, o vereador consegue defender causas que não teriam apoiadores suficientes para um cargo majoritário.
“Eles representam coisas que não necessariamente o Executivo não tenha interesse, mas que seriam difíceis de fazer campanha, por exemplo”, explica Patrick Cunha Silva, doutorando em ciência política pela Universidade de Washington. “Mas o legislador consegue encampar essas pautas porque existe um número de pessoas necessário para elegê-lo.”
Para levantar debates sem tantas amarras, o vereador tem imunidade parlamentar garantida pela Constituição Federal. Em 2015, o STF (Supremo Tribunal Federal) discutiu o assunto e concluiu que “nos limites da circunscrição do município e havendo pertinência com o exercício do mandato, garante-se a imunidade do vereador”.
Embora seja papel de todos os eleitos receber a sociedade civil para ouvir suas demandas, a Câmara Municipal, por seu caráter plural e mais próximo da comunidade, acaba propiciando a recepção dos moradores da cidade.
“Mesmo que o Executivo tenha esse tipo de obrigação, certamente o vereador vai ser mais acionado pela população. Esses vereadores fazem campanhas para nichos, então muitas vezes as pessoas votam neles e vão buscar algo específico”, afirma Silva.
Folha de S.Paulo
Deixe seu comentário