27 de dezembro de 2024

(77) 98833-0195

‘O Supremo tornou-se hoje o órgão mais poderoso da República’, diz cientista político

  – Da BBC Brasil em São Paulo
  • Kleyton Amorim/UOL

    'O STF virou um campo de batalha entre aqueles que, como o Barroso (foto), querem levar adiante a 'revolução judiciarista'", diz cientista político

    ‘O STF virou um campo de batalha entre aqueles que, como o Barroso (foto), querem levar adiante a ‘revolução judiciarista'”, diz cientista político

Diante de um cenário de corrupção de políticos, crise econômica e descrédito da população em relação aos seus representantes, um grupo de servidores do Estado se insurge para tentar reestabelecer os valores republicanos no Brasil.

Foi o que aconteceu nos anos 1920, 1930, quando um movimento de tenentes do Exército tentou tomar o poder e impor uma agenda de moralidade administrativa. E é, de acordo com o cientista político Christian Lynch, o que tem acontecido nos anos 2000 e 2010, com um movimento de juízes de diferentes instâncias que passou a usar a interpretação das leis para colocar quadros da política nacional atrás das grades e rever benesses destinadas às elites nacionais – como o foro privilegiado derrubado essa semana pelo STF.

O primeiro movimento ficou historicamente conhecido como tenentismo e marcou a história brasileira com episódios como a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana ou a Coluna Prestes. O segundo, Lynch, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, batizou de ‘tenentismo togado” ou “judiciarismo”. Em comum, ambos têm a motivação política, a classe social de origem e os objetivos moralizantes. No primeiro caso, no entanto, o grupo tentou alterar o status quo por meio das armas – e fracassou.

“Substitua ‘espada’ e ‘metralha’ dos tenentes por delações premiadas e sentenças condenatórias e teremos o tenentismo togado do Brasil”, diz ele, em referência às ações da Operação Lava Jato e às contendas recentes no STF.

Os desdobramentos da movimentação dos juízes “tenentes” no país é ainda incerta, mas seu poder tem escalado continuamente, de acordo com Lynch. Hoje, o Supremo seria o órgão mais poderoso no país e o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, possível candidato presidencial pelo PSB, o representante do movimento no pleito de 2018. Em entrevista à BBC Brasil, Lynch, que é também pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, explicou sua teoria acerca do “tenentismo togado” e explorou os possíveis impactos do movimento para o futuro político nacional.

BBC Brasil – Quais paralelos o senhor vê entre o tenentismo e o ativismo do Judiciário atual?

Christian Lynch – O que aconteceu de cinco anos para cá – com as Jornadas de 2013 – é que o consenso moderado da política brasileira de vinte anos se desfez, e voltaram a surgir correntes radicais da direita e da esquerda. O establishment político liderado pela presidenta Dilma não conseguiu dar nenhuma resposta às insatisfações, e surgiu o espaço para uma “vanguarda”. Isso aconteceu no momento em que a operação Lava Jato começou a tomar vulto. A gota d’água foi a vitória apertada de Dilma em 2014, com sua declaração infeliz, na própria noite da vitória, de que não falara a verdade ao longo da campanha e que havia uma monstruosa crise econômica e seria inevitável o ajuste fiscal.

Como o PT não poderia bancar um ajuste fiscal sem rasgar todas as suas bandeiras, as relações do partido com a presidência baquearam; da mesma forma, com o avançar da Lava-Jato, soou o alarme dentro do PMDB, incrédulo a respeito da capacidade da presidenta de “estancar a sangria” (expressão usada por Romero Jucá em áudio em que se atribui a ele interesse em frear as investigações). Em março já se falava em impeachment. Diante do vácuo do poder, os juízes aparecem. Começou a “revolução judiciarista”.

Essa é uma conjuntura parecida à vivida no país de 1929-1930. Os setores insatisfeitos não conseguem ver no aparato institucional – governantes, congressistas, partidos – uma válvula de escape para a renovação, e daí, naquela época, temos a revolução tenentista. As vanguardas aparecem em momentos de crise do sistema político-constitucional.

BBC Brasil – Quem são essas vanguardas?

Lynch – São grupos geralmente instalados no próprio aparelho do Estado, pertencentes ou originários da classe média, que passam a defender a tese de que não podem se comportar de modo passivo como meros burocratas a serviço de autoridades que percebem como corrompidas. Toda vanguarda se investe da posição de guardiã da República, da moralidade, da boa política, da cidadania. A vanguarda modernizadora brasileira por excelência foi representada pela jovem oficialidade do Exército, os tenentes.

Agora, esse ativismo político não é nacionalista nem surge dentro do Exército. Ela é orientada por valores liberais e vem das fileiras do Poder Judiciário e do Ministério Público, e se materializa na doutrina do “judiciarismo”, ou seja, da centralidade da atuação política do Judiciário para a salvaguarda da democracia e dos valores constitucionais. Graças à “ideologia do concurso público”, os juízes e procuradores percebem-se como gente que vive dos próprios esforços e méritos; eles detêm um poder que não é propriamente político, mas que, em um contexto de indignação generalizada com a política, é usado para fazer justiça, entre aspas.

Na República Velha, como o sistema político não dava vazão às vontades das minorias e o sistema ficava cada vez mais conservador, Rui Barbosa começou a apostar no Supremo Tribunal Federal para desalojar as oligarquias do poder por meio da mudança de interpretação da constituição.

O movimento tenentista invocava Rui Barbosa. Um de seus manifestos dizia: “Ou a política se regenera, se torna sã e útil, ou nós a destruiremos de qualquer forma, mesmo que seja novamente pela espada e pela metralha.” É mais ou menos o que o ministro Luís Roberto Barroso representa agora. Substitua “espada” e metralha” por delações premiadas e sentenças condenatórias, e teremos um cenário semelhante ao de hoje, gerado pelo “tenentismo togado”.

BBC Brasil – Quando os juízes começaram a se constituir como atores políticos?

Lynch – Há pelo menos duas décadas. A judicialização da política foi uma consequência da Constituição de 1988. Os deputados constituintes apostaram na organização de um Judiciário e de um Ministério Público independentes e poderosos em relação ao Executivo e ao Legislativo. Ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso, houve um grande investimento nas carreiras de juiz e de procurador, de valorização das carreiras de estado. Ao mesmo tempo foram aumentando as prerrogativas e os privilégios da classe.

A ideologia do “judiciarismo” reapareceu por esse tempo, respaldado pela tese de que, ao lado da representação eletiva (deputados, senadores, vereadores), existiria uma espécie de “representação funcional” da sociedade, exercida pelo Judiciário e pelo Ministério Público. Mas o Judiciarismo também se respaldou, dentro da academia, a reboque de uma moderna teoria do direito, conhecida como pós positivismo ou neoconstitucionalismo.

BBC Brasil – O que seria isso?

Lynch – Grosso modo, é a ideia de que os juízes e promotores não deviam mais se limitar a executar as leis de forma passiva; que eles deveriam se conscientizar de suas responsabilidades como agentes cívicos e passar a interpretá-las. Nessa chave, em vez de aplicadores das normas jurídicas, os juízes e promotores passaram a se ver como guardiões dos princípios constitucionais, como dignidade da pessoa humana, republicanismo, cidadania, livre iniciativa, pluralismo político, etc. Eles passaram assim a encarnar, contra o malvisto “político profissional”, o “bom político” idealizado pelo liberalismo clássico: idealista, justiceiro, desprendido, adversário das oligarquias, dos ditadores e das multidões irracionais.

O problema é que essa doutrina foi desenvolvida em lugares muito diferentes do Brasil. Na Alemanha, são apenas os 16 juízes do Tribunal Constitucional Federal que podem interpretar a constituição. Nos Estados Unidos, qualquer dos cerca de 30 mil juízes pode exercê-la, mas a Constituição americana tem 7 artigos e menos de 50 comandos. No Brasil, a Constituição tem 250 artigos. E são cerca de 16 mil juízes que ficaram encarregados de interpretá-los a seu modo. Então a disparidade de interpretações se tornou epidêmica, obrigando à centralização crescente da jurisprudência no Supremo Tribunal, que se tornou ainda mais poderoso no sistema político.

BBC Brasil – Não é incoerente que os juízes defendam a moralidade na administração pública mas defendam receber auxílio-moradia de cerca de R$4 mil mensais?

Lynch – Eu brinco dizendo que os guardiões da República cobram caro para exercer suas funções moralizadoras. Sem dúvida, é estranho que juízes que se digam tão republicanos e desprendidos e em nome desses valores defendam a moralidade na administração pública desejem ganhar vencimentos estratosféricos e recorram aos expedientes os mais vergonhosos para seguirem aumentando-o – como este, do auxílio-moradia de cerca de R$4 mil mensais inclusive para quem tem casa. E nesse sentido eles lançam mão de um argumento de mérito: eu me esforcei para passar no concurso público, então agora tenho direito aos privilégios. É um mero pretexto para justificar privilégios e faz parte das contradições desse liberalismo judiciarista.

BBC Brasil – Como se cria essa mentalidade nos juízes?

Lynch – O movimento começou nas pós-graduações em direito, na década de 1990, na forma de um “constitucionalismo da efetividade”, contra a passividade com que o STF exercia suas novas prerrogativas constitucionais. Foi um movimento deliberado e articulado voltado para mudar a mentalidade dos operadores jurídicos, operado de dentro da academia, que ganhou depois a graduação e entrou nos quadros da magistratura e do ministério público. O pós-positivismo ou neoconstitucionalismo foi o passo seguinte, recepcionado do mundo norte-americano e alemão. O que percebemos hoje nos embates entre os juízes do Supremo Tribunal, que os tornam tão agudos, não é apenas um reflexo da luta política que se desenrola fora do plenário, mas da luta por poder dentro do próprio tribunal, que às vezes também adquire feições de uma luta entre gerações e formas antagônicas de interpretação da Constituição. Os judiciaristas entendem que o juiz constitucional não pode decidir em abstrato ou no vácuo, devendo levar em consideração as circunstâncias concretas e as consequências objetivas de seus atos. Por isso, ao julgar uma questão penal, eles recorrem a estatísticas, informações do sistema penitenciário, comparação com outros países, etc.

No julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula, essas cisões ficaram claras. No âmbito do direito penal, houve um declínio do chamado garantismo, corrente doutrinária extremamente favorável ao réu ou ao investigado, baseado em considerações filosóficas e humanísticas relativas à inutilidade da pena de prisão para a ressocialização do condenado. Esse era o mundo de juízes como Celso de Mello e Marco Aurélio. Entretanto, em algum momento entre a década de 1990 e os anos 2000, aqui também as coisas começaram a mudar. Com o sentimento de degeneração do sistema representativo, atacado por uma corrupção sistêmica, os juízes e promotores “políticos” começaram a se preocupar com o problema da impunidade e a buscar novas soluções para combatê-la, especialmente no nível dos grandes empresários e dos políticos profissionais e seus afilhados. Não seria com garantismos e pela impossibilidade indefinida de recursos, pensaram, que conseguiriam dar cabo dessa tarefa.

BBC Brasil – Por que há essa mudança?

Lynch – O perfil dos procuradores e juízes mudou, pelo menos no Sudeste e no Sul do país. Antigamente, o juiz era uma carreira a que quase sempre se ingressava por nomeação do governador ou do presidente. Então, o magistrado típico era o apaniguado, o sobrinho do prefeito. Os juízes até recentemente estavam invariavelmente ligados às oligarquias tradicionais e políticas por laços de sangue ou dependência. Eram, por conta disso, mais deferentes diante do poder. A introdução do concurso público como modalidade exclusiva de acesso ao sistema alterou essa configuração sensivelmente. Passaram a ingressar na magistratura e no ministério público gente de classe média para quem a vitória no concurso público representava o coroamento de uma trajetória árdua de estudos, ou seja, a vitória do seu “mérito”. Na prática, o concurso para aquelas carreiras passou a ser encarado como a porta de ouro por meio do qual a classe média conseguiria ingressar em um estamento privilegiado, cheio de privilégios e regalias corporativos, além de crescente poder político.

BBC Brasil – Quando o general Villas-Boas escreve, nas vésperas do julgamento do habeas corpus do Lula no STF, que o Exército repudia a impunidade, ele está reforçando o lado Judiciarista da história, não?

Lynch – O ministro Barroso reconheceu outro dia, talvez involuntariamente, que militares, procuradores e magistrados têm várias características comuns, desde funcionais até ideológicas. Os militares certamente têm, como os “tenentes togados”, horror à política profissional, e desejam muito que a “faxina cívica” promovida por estes últimos chegue a bom termo, com a “cassação dos corruptos”. Um dos aspectos que temo na renhida luta que vem se desenrolando no STF, entre judiciaristas e antijudiciaristas, representados por Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, é que a derrota do pessoal do Barroso possa provocar um pronunciamento militar. A mensagem veiculada pelo Comandante do Exército na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula foi uma advertência nesse sentido: se os “tenentes togados” não conseguirem fazer a “faxina”, os tenentes propriamente ditos, os armados, poderão entrar em cena.

Este é um contexto perigosíssimo. O STF virou um campo de batalha entre aqueles que, como o Barroso, querem levar adiante a “revolução judiciarista”, a fim de “empurrar a História”, e aqueles que querem debelá-la a fim de salvar o establishment político. O Brasil virou o país da chicana: todo mundo agora tenta puxar o tapete de todo mundo, engendrar estratagemas e usar de artifícios pra fazer valer a sua posição – e isso acontece até no nível do Supremo. Só um novo presidente poderá reinicializar o sistema político; só ele terá uma legitimidade que hoje ninguém mais tem.

Mas não se trata de uma eleição qualquer e de um presidente qualquer: o ambiente de ruína em que as instituições se encontram, com os contendores se batendo com violência e a população exausta pela “revolução”, estão reunidas várias condições para a potencial emergência de um presidente “Bonaparte”, isto é, alguém que reivindique o restabelecimento da autoridade e da honestidade, de um lado, com a necessidade do progresso social, de outro. Uma mistura de Lula com Bolsonaro. O vitorioso, único poder legítimo no meio dos destroços, assumirá o poder com uma força e uma legitimidade que só o ex-presidente Fernando Collor teve no passado recente; com autoridade para fazer praticamente tudo o que quiser.

BBC Brasil – Com esse crescimento do Judiciarismo, não soa um pouco estranho que ele ainda não tenha tido um candidato à presidência para chamar de seu? Essa pessoa seria o Joaquim Barbosa?

Lynch – Ter um presidente é estratégico, porque é ele quem indica os juízes do Supremo Tribunal e o procurador-geral da República. Mas, para os judiciaristas, mais importante do que ter um candidato a presidente, é assegurar uma maioria dentro do STF. O Supremo tornou-se hoje o órgão mais poderoso da República, só encontrando equivalente no Conselho de Estado do Império. Seus membros têm mais poder do que qualquer deputado ou senador.

Então, o judiciarismo não precisa necessariamente ter candidato. Mas ele virá. Comprometer-se com os ideais da “revolução judiciarista”, como o combate à corrupção, será um puxador de votos importantíssimo para qualquer candidato que deseje vencer nas eleições deste ano. O ex-ministro Joaquim Barbosa seria o candidato natural do judiciarismo e das forças que o sustentam. E ele viria com todas as chances de ser o candidato de perfil bonapartista, com um espírito da liquidação das oligarquias.

Acho pouco provável a vitória de candidatos das máquinas partidárias que estejam encrencados com a Justiça ou com a imagem muito colada ao establishment político, como o Alckmin também. O que a maior parte do eleitorado – ou, pelo menos, a parte mais influente deles – buscará provavelmente é um candidato comprometido com o reestabelecimento da autoridade no país, mas também com a garantia das conquistas obtidas nos últimos anos com a redução das desigualdades sociais, e também do combate à corrupção. Não sei se o Joaquim Barbosa aguenta uma eleição, em termos de personalidade, mas a estampa e a história dele o legitimam desse ponto de vista.

Da BBC Brasil em São Paulo
  • Kleyton Amorim/UOL